Dormi apenas 4 horas. O dia está cheio. Estou sentado à mesa de frente pro canil do Bingo. Depois de 12 anos é tão triste vê-lo assim. O AVC fez dele limitado. O vejo batendo o focinho na porta, nos pilares, do portão. Tem dias que vou lá retirá-lo de sua desordem mental, mas na maioria das vezes, fico pensando: se ele fosse eu? Conscientemente, poderia dizer que não estou preparado pra esse fim.
Pedi um café por delivery. O fogão está com vazamento de gás e com a agenda cheia, e morando sozinho, não dá pra consertar.
Ontem vi Adele no corredor e já veio com uma vozinha mansa querendo reatar a conversa, ao invés de falar de si, esparramou tudo que sabia sobre Fred, o pivô de nosso fim. Em cada palavra, uma espécie de alegria me tomava, era um livramento aquele caso, poderia oferecer flores e bombons pro Fred. Cada vez que ouvi Adele, após o episódio de traição assistido, sei mais dela que de Fred. Mas não perderei tempo com o que passou. O passado é só uma escrivaninha velha sustentando meus perrengues até que possa superá-los numa sessão com Lyndia.
Por flar em Lyndia, ontem saí de lá com as pernas bambas. Ela tem uma mania de cortar minhas desilusões com uma foice e depois pede pra sair da sala com o sangue escorrendo pelo chão. Custei para chegar no carro. Tremores, calafrios, tristeza, dor. É uma tortura essa terapia. Ainda mais, quando esses sonhos recorrentes ficam passando na minha mente. Queria dizer a ela que sei muito bem como é que se faz uma análise do superego, mas ela me trata como se fosse o esterco. Joga-me no campo fértil da mente e me pede para esperar o tempo. Que tempo? Nem o tenho para desperdiçar com esses fantasminhas camaradas. Chama os caça-fantasmas!
Meu pai me ligou hoje, dizendo que ele e minha mãe vão para Barcelona. Nunca compreendi a total sintonia dos dois. Mas Freud me ajudou, "quando dois concordam sempre, só um pensa", e nessa onda descobri que minha mãe vegeta há exatos 35 anos. Quando perguntei se ela havia gostado do destino, veio com um tanto faz. Tanto faz já não satisfaz o que preciso! Ainda bem que fomos separados pelo ordão umbilcal no nascimento e depois o fizemos novamente numa sessão de constelação. Não entendi nada do que aconteceu naquele dia, mas se isso a libertaria, fui sem receio. Mas ela nunca se libertou de nada. Tantas amarras. Ela se diz desapegada, que aceita qualquer coisa, como se isso fosse uma qualidade irrefutável, mal sabe ela que alguém a matou faz tempo ou ela se matou. Não aceita que intervenha em sua vida, por mim tudo bem! Mas vê-la feito um lenço em favor do vento me dá medo. Sei lá quando ela vai perceber que se o vento acabar, ela não voa mais... E como nunca aprendeu a andar, vai ficar paralisada.
Mas, enfim, hora de pegar o lanche, o interfone tocou.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 22/09/2020
Reeditado em 23/09/2020
Código do texto: T7070040
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