FIM DE UMA LINHAGEM

Foi algo que nós não imaginávamos que aconteceria. Foi um erro. Uma covardia. Tivemos que sair às pressas daquela cidade, Wandelburgo, no sudoeste, quando o nosso ex-líder nos “libertou” nos dando um dia apenas para nos arrumar e fugir da cidade. A gente ia para uma região mais calma que fica no norte, mas quando chegamos na estrada que leva para a região do Leito da Prata nós vimos uma multidão, uma legião de carruagens fazendo fila nessa estrada, indo na direção contrária a da cidade. Eles tinham saído dela e estavam fugindo. Questionamos entre nós a causa daquele alvoroço, mas lembro bem que eles não se incomodaram conosco, nossa presença não foi ameaçadora para eles, nós somos bandidos, saqueadores sem escrúpulos, mas aquela gente não estava nem aí.

De qualquer modo, não estávamos com ânimo para roubar nem uma ovelha, éramos apenas trinta pessoas e eles eram umas 40 famílias. Perguntamos para algumas pessoas de onde eles vinham e o motivo, pensamos que o Império já havia chegado lá e aplicado a famosa política do “fique e viva sobre nossas ordens ou então fuja ou morra tentando se livrar de nós”. Mas não era isso, aquelas famílias flageladas estavam fugindo da morte, a natureza havia feito o massacre desta vez, não um império ou uma tribo de Selvagens ou Bravios, como éramos conhecidos. Disseram eles para a gente que o mar tinha invadido suas terras, destruído suas casas, matados seus animais e devastado plantações. Disseram que uma onda enorme atacou todas as vilas perto da costa, essa onda, diziam eles, embora nem todos tinham visto de perto ou só tinham ouvido histórias, era maior que uma colina. Achamos aquilo um absurdo.

Mas se algo tão grave não tivesse acontecido àquelas pessoas não estariam ali aos montes, se empilhando umas nas outras, buscando um lugar em meio aos pampas para acampar até o outro dia. Insistimos no assunto da onda gigante. Alguns deles, principalmente os mais velhos nos contaram que era uma punição de Amel, alguém deixou de fazer algum ritual ou alguém profanou a terra sagrada ou mar dela e ela estava furiosa, os velhos só não explicavam o porquê ela teria punido eles, que nada fizeram além de pescar e trabalhar na terra, ao invés de punir marinheiros do Império ou das diversas tribos que batalhavam entre si na terra e no mar, jogando cadáveres nos mares, rios e lagoas.

Pelo que entendemos, a onda atingiu a costa sul e o mar avançou até onde não se sabe ao certo, mas o Leito da Prata havia se fundido as ondas do mar, isto é, o mar havia de fato devorado a terra e Amel estava faminta naquele dia. Se foi tão grave assim, então devem estar acontecendo outros deslocamento de pessoas para todas as regiões. Um homem muito velho, cheio de si, também bastante enrugado feito a pele dos dedos quando ficam muito tempo embaixo d’água, que insistia em andar com sua bengala espetando a terra, enquanto caminhava devagar, arrastando os pés, nos disse que se insistíssemos em ir para o sul iríamos encontrar o cansaço, a fome e a morte, que Amel iria nos jogar no mar e sua criatura de estimação, Acaetá, híbrido de touro e polvo, iria nos devorar. Os olhos desse senhor eram profundos feito uma caverna escura que guarda criaturas selvagens e perigosas, por isso decidimos acreditar de uma vez por todas na história da onda e mudamos nossa rota.

Então seguimos para o mais longe do sul que podíamos sem sofrer mais do que tínhamos sofrido. Nossa tribo antes das revoltas tinham centenas de membros, agora somos uma pequena parte do que restou, para comparar, somos apenas uma mecha do que um dia já fora um longo e bem cuidado cabelo feminino. Nós não estávamos indo bem. Maxuel, nosso líder, havia dado ordens e essas ordens não foram seguidas de forma alguma. Uma dessas ordens era que as mulheres evitassem engravidar, logo isso só era possível se os homens também evitassem transar e isso não aconteceu. Logo havia três mulheres grávidas: Tamia, a mulher de Maxuel, Holanda e Juliana.

Devido a nossa condição precária, sem descanso e mal alimentada, Tamia perdeu a criança e passou o resto da viagem xingando a si mesmo, nos xingou bastante também. Praguejou contra os deuses e principalmente contra Lenir que havia lhe tirado sua prole. Quando Lenir fazia isso era porque algo de ruim a mãe grávida fez, ou Lenir precisava de um sacrifício e às vezes pegava o filho inato de uma grávida sem pedir. Havia o Adriano, o Cauto, era o mais velho entre nós, sua pele enrugada era marcada pelo sol, pelo trabalho na terra e pelas batalhas de quando era Adriano, Bebedor de Sangue. Adriano constantemente tentava acalmar Tamia, insistindo que parasse de falar mal dos deuses e que eles a compensariam com muitos outros filhos, afinal ela era jovem ainda e seu bucho aguentaria uns seis ou sete filhos um atrás do outro.

Maxuel estava com a cara amarrada e andava no seu cavalo como se sua cara estivesse se arrastando no chão.

- Quero fazer uma oferenda… uma oferta aos deuses, que seja - disse bufando - Acho que fomos amaldiçoados. Em cada templo que a gente passar eu vou fazer um sacrifício, vou sacrificar um animal grande ou pequeno, o que eles quiserem. Preciso conversar com um sacerdote...

Ele ficava dizendo: preciso disso e preciso daquilo, mas todo mundo sabia que assim que chegasse numa aldeia ou vila a primeira coisa que faria era se embebedar com qualquer garrafa disponível e esqueceria esse papo de oferenda. Nós costumávamos pensar que ele só pensava alto, ao invés de achar que o que ele falava era o que realmente queria fazer.

Enquanto isso, no fundo da fila dos desabrigados, o jovem e forte Ambrósio sorria para Holanda, sua esposa barriguda, mais algumas semanas e eles teriam seu primeiro filho e estavam muito felizes com isso. O vestido de Holanda havia sido costurado diversas vezes acrescentado partes diferentes de tecido ao passo que sua gravidez avançava, um tipo de tecido lhe causava incômodo, coceira, mas ela não reclamava disso e por isso gostávamos dela.

Maria, ah Maria, que mulher distinta. Alguns de nós revezamos a posse de Maria e ela nos revezava também, pois era muito requisitada e muito graciosa, seus cabelos longos e cacheados, tantos espirais nos cabelos que a gente ficava tonto e se perdia neles. Ela preparava uma solução com água e algumas plantas e raízes, batia, triturava e misturava e nos dava para beber. Era como se a gente conseguisse entrar no mundo dos deuses e que eles me perdoem, mas nessas aventuras eu já me vi transando com Ipza e Lorran, até com a própria Amel. Será que estou sendo punido por isso?

De fato, Maria tinha caso com cinco pessoas da tribo, dos quais dois eram homens e três eram mulheres. Nunca dava briga, pois a gente sabia dividir. Ela era boa com números, contava o passar do tempo como ninguém, viera de um lugar que as pessoas sabiam diferenciar uma época da outra sem olhar para o céu ou para as plantas, anotavam tudo em tábuas de madeira ou argila usando um símbolo para cada vez que o sol se punha e nascia de novo. Ela fez num pedaço de pau quando e quem iria dormir com ela e deu para cada um de nós um símbolo, eu achei o meu símbolo tão estiloso que entalhei num outro pedaço de madeira do tamanho de uma moeda, fiz um buraquinho pequeno na extremidade e passei uma fina tira de couro por dentro e coloquei no meu pescoço. Carregava aquilo como se fosse um prêmio.

Depois dessa longa jornada rumo ao sudeste, chegamos a uma cidade chamada Hipópolis, nós nunca tínhamos ido para tão longe em nossas caminhadas; não conhecíamos a região e aquela cidade nos abrigaria até o fim do inverno. Isto é, se suportássemos ela, pois as mulheres foram as primeiras a reclamar.

- Cheiro de merda!

De fato, a cidade registrava os sinais do que acontece quando muitas pessoas vivem em um só lugar por muitos anos. Os porcos caminhavam soltos nas ruas e brincavam com os cachorros, enquanto ambos disputavam território alimentício com milhares de pombos. Havia jumentos e outros equinos velhos e mancos que, por discrição ou medo, talvez, os mendigos já não os tivessem comido. Esses mendigos se espalhavam aos montes em cada praça, entre as casas amontoadas, dentro de bares, na porta dos templos… Não dava para saber ao certo, olhando de longe, quem era mendigo e quem era escravo, servo ou comerciante, porém com um olhar mais aguçado dava para notar quem era quem: o escravo era um todo sujeira e feridas, não de apanhar, mas da falta de cuidado em que uma ferida menor se formou em uma maior, embora nem todo escravo fosse assim, apenas os de trabalho, pois haviam tipos diferentes de escravos. Enquanto os mendigos tinham a mesma aparência dos escravos, mas quase sempre eram encontrados sentados ou dormindo na sarjeta.

Todos andavam entre todos, mas havia uma hierarquia de sangue ou de posse que era diferente do tipo de vida que a nossa tribo tinha. Em cidades as coisas eram diferentes do que acontecia nas terras de outros povos que não tinham cidades e viviam como andarilhos. Sendo específico, em Hipópolis todos andavam na sarjeta, mas só alguns dormiam na sarjeta. Os nobres só dirigiam a palavra ao comerciante do qual havia lhe vendido algo, isso somente caso o serviçal estivesse ocupado carregando toneladas de mercadorias nas costas e nos braços porque as ruas eram muito estreitas entre as feiras e não dava para pôr tudo numa carroça; os soldados usavam vestimentas de couro com um pouco de malha de metal em pontos críticos, uma espada e um escudo, as vezes um machado e andavam em grupos de quatro pelos becos e vielas, enquanto os arqueiros espreitavam por cima dos muros com arcos nas costas e uma caneca de cerveja na mão. Não foi visto qualquer tipo de camponês na cidade.

Era esquisito ficar no meio de tantas pessoas, ainda por cima quando não estavamos roubando-as. Nossa tribo se espalhou, alguns ficaram nas estalagens enquanto outros em bordéis, mas outros optaram por nem se juntar a nós e dormiram nas sarjetas com os mendigos. As mulheres preferiram as estalagens porque era onde se tinha mais comodidade, embora não fôssemos acostumados a esse tipo de vida, vivíamos sob o lombo de cavalos ou em cabanas improvisadas, deitados em camas de feno e pele de animais, mas gostávamos de comer bem, beber muito e ouvir música, portanto as estalagens supriam nossos desejos. Demos três pratas e conseguimos cinco cômodos para dormir, cada um para um homem e uma mulher, inclusive Holanda e Ambrósio ficaram com o melhor quarto devido a gravidez da mulher.

O vento batia forte na janela, fazia frio do lado de fora, embora dentro do salão estava bem agradável, havia muito pão, queijo, carne de coelho, tatu, ovos, cerveja e vinho. Tamia estava furiosa e não quis ficar com o restante do pessoal, se isolando na cama; Ambrósio desceu para beber e comer conosco só depois que sua esposa finalmente dormiu no quarto clareado pela luz irregular de apenas uma vela.

Havia um contador de histórias talentoso que tentava falar mais alto que o barulho da ventania que vinha de fora. Houve revezamento entre música e história, no entanto queríamos mais ouvir histórias sobre nossos antepassados guerreiros e deuses, de como conquistaram as terras onde vivemos, como derrotamos outras tribos e o porquê de sermos tão bons em tudo que fazemos.

Horas se passaram, muitos de nós estavam dormindo no chão e na mesa, mas Ambrósio subiu para ver como sua esposa estava, entretanto menos de um minuto depois já estava descendo a escada aos pulos e berrando.

- A Holanda foi assassinada! Mataram minha mulher! Quem foi o filho da puta, quem foi?

A gritaria não teria fim se Maxuel não tivesse apertado o rosto dele com as mãos firmes e olhando em seus olhos, transmitindo o conforto que precisava.

- Vamos achar o assassino, Ambrósio! Por Oleno - pensou nos deuses e para ele era certo que haviam sido amaldiçoados - vamos conseguir. - depois olhou ao redor onde todos nós estávamos tentando ficar de pé, cambaleando - Vasculhem cada palmo desse lugar! Cadê o Adriano? ADRIANO, ADRIANO!

Adriano, o Cauto, foi encontrado sentado sobre uma poça de seu sangue, com uma faca cravada no estômago. Ele respirava baixo e estava sem força para mover qualquer parte do corpo que não fosse o pescoço, olhos e boca. O velho disse que estava indo para cama quando viu Tamia sair do quarto e entrando no quarto da Holanda, mas não deu muita importância até que Tamia saiu banhada de sangue. Foi uma ação rápida. Adriano não conseguia andar sem se segurar na parede devido a embriaguez; foi fácil para Tamia lhe espetar com a mesma faca que havia enfiado na Holanda.

Maxuel não sabia o que fazer, confiava em Adriano, mas não conseguia digerir a informação de que sua própria esposa traiu a tribo dessa maneira, ela havia mostrado sinais de raiva, mas não loucura, demência. Matou uma mulher grávida, o que era pior e ainda matou Adriano, o homem mais velho e sábio do que restou de uma tribo na beira da extinção. O líder tremia, havia lágrimas nos olhos, elas marejaram e ofuscaram sua visão, mas não desceram.

De qualquer maneira, Adriano foi forte na queda e só morreu quando Maxuel lhe deu o golpe de misericórdia. No quarto, Holanda estava morta, a causa era muito clara, Maxuel disse:

- Ela fez isso porque não suportava ver outra pessoa tendo um filho, sendo que o dela… o nosso… havia morrido antes de nascer. - mal terminou a frase e viu-se em lágrimas, com a cabeça baixa, chorou em silêncio.

Embora não antes mencionados, também havia soldados na estalagem e eles beberam e comeram conosco. Alguns soldados foram ver o que tinha acontecido, foi no momento que nossa tribo e alguns soldados começaram a se estranhar. O conflito era que os soldados não deviam se meter no assunto da tribo, pois a tribo se resolveria sem a presença deles. Porém, os soldados discordavam, visto que o crime aconteceu dentro de uma cidade com suas leis e elas deveriam ser cumpridas, segundo eles. Mas Ambrósio não queria saber do que os homens de lei, os soldados ou sua tribo queriam. Ele queria vingança. Ele pegou a espada de um soldado embriagado que estava dormindo na mesa. Ele quis matar o nosso líder.

Os soldados, só haviam uns cinco, levantaram suas espadas e nós também. Os soldados achavam que Ambrósio queria atacá-los, quando ele correu reto sem pestanejar, com a espada levantada, na direção de Maxuel que estava devastado e indefeso; nós mesmo tínhamos que intervir.

- Sua esposa matou a minha - disse ambrósio em estado de fúria - Eu vou matar você por vingança de sangue! - vingança de sangue: você matou um dos meus, um dos seus deve morrer também.

Maxuel nem se moveu.

Uma lança voou sob nossa vista, Ambrósio estufou para frente, jogou a cabeça para trás e caiu de joelhos, ainda se arrastou por uns palmos até ficar imóvel, deitado de lado com a ponta de lança saindo do peito. Nós viramos nossas espadas em direção aos soldados; um deles estava sem uma lança, então outro chutou a porta de madeira velha da estalagem e entraram mais dez soldados e haviam indícios de que não eram os únicos. Nós tentamos lutar contra eles, tentamos nos organizar, mas haviam mesas e cadeiras espalhadas em toda parte, nossos homens nas escadas, alguns desarmados pegaram uma faca de cortar carne. Não foi uma luta digna de ser contada por um contador de histórias, estava mais para uma briga de bar ridículas entre bêbados, cornos e arrasados.

Tentamos lutar, entretanto estávamos em número muito inferior, três lanceiros nos espetavam de longe, não havia chance para nós. Depois vieram com espadas e o sangue foi derramado de vez, brigamos jogando cadeiras nos soldados, arremessando barris meio vazios. Ao tentar subir as escadas e buscar armas de verdade fomos perfurados por flechas, isso até quando um homem de armadura bem polida gritou qualquer coisa e todos pararam de nos massacrar, depois nós, os vivos, fomos arrastados para o lado de fora, com correntes de ferro amarradas e presas nos braços, levando pancadas com escudos para que a gente se movesse.

Passamos alguns dias, não sei quanto tempo exatamente, em uma prisão fedorenta, quase sem comida e água. As celas eram muito apertadas e úmidas, a escuridão não ajudava em nada, a gente viveu esses dias em cima de poças de água que escorriam das paredes e era melhor pôr a boca e ficar lambendo o que saia dessas infiltrações se não quisesse morrer desidratado. Estava entre nós todos que não foram mortos na estalagem: Maxuel, Guilherme, Chico, Olavo e Magão; e de mulher apenas Luciana e Maria. Eu sentia muita pena de Maria, acho que a amava. Pouco a pouco as pessoas da tribo foram levadas, quando ouvíamos o barulho de uma cela se abrindo não conseguimos imaginar o que viria a seguir, podia ser a escravidão, a tortura ou na melhor das hipóteses a morte.

Kevin Libra
Enviado por Kevin Libra em 23/09/2020
Código do texto: T7070512
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