Não tenho tempo, não tenho tempo, não tenho tempo. É isso que me deixa estressado. O dia deveria vir acoplado com extensor de tempo. Um tipo de HD externo de computador mental. E quando precisasse estaria na prateleira e esperando com um sorriso embutido: - Enfim, você vai me usar. Ridículo isso. Pra falar a verdade todo mundo é um pouco ridículo. Quem nunca provocuu um riso? Que seja numa queda inusitada bem diante dos olhos alheios à espera de um deboche? 
Não estou bem. De uns dias pra cá voltei a ter aqueles malditos sintomas de TOC. Abrindo as portas com os cotovelos, lavando as mãos com água e sabão de 20 em 20 minutos, passando álcool em gel até na raiz do cabelo, sei lá se o corona prefere as áreas úmidas? No cesto de roupas coloquei o meu último lençol e fronha. Olho para eles e tenho a sensação de estare contaminados, é coo se eles olhase par mim dizendo: - Estamos containados, estamos contaminados. Tudo isso por causa desse isolamento social obrigatório. Pra falar a verdade sempre me isolei do mundo, mas coo obrigação é tão mais difícil. O gás continua com problemas, claro não é? Ainda não tem magia pra vender em farmácias. E agora a geladeira anda fzendo uns barulhos estranhos, como se estivesse cansada de ser mal aproveitada. Passa semanas ligada com uma jarra de água, uma caixa de leite e maionese. Mas o freezer guarda segredos inimagináveis. Os potes de mãe precisam voltar para casa dela. Porque ela nunca se lembra dos empréstimos em dinheiro, que faço com meu pai, por intermédio dela, mas as vasilhas, sabe exatamente a quantidade, o modelo, a cor das tampas, o conteúdo. Paciência! Não consigo guardar números de telefone, senhas de banco, vou guardar tampas e formatos? Enfim, vamos de lazanha pro almoço de hoje.
Conferi na agenda e tem sete atendiments on line. Todos confirmados. Já ia me esquecendo de anotar o mais importante: tive um sonho. Estava nu sobre uma pedra que ficava numa ilha deserta. E volta do meu corpo estavam jacarés, piranhas, animais violentos de toda espécie, mas estavam cuidando de mim para não ser atacado pelos humanos. Estavam lá todos os meus pacientes, enfileirados, cada um com uma rma na mão. Tinham foices, facas, revolveres, canhões. Mas tinha um escudo iluminado que nos separava, parecia um portal celeste. Fiqui de pé várias vezes sobre um arco-íris. E quando isso acontecia, virava um homem colorido e pegava o corpo de um dos meus pacientes. Foi tenso. Acordei com o rosto de Misalva.
As histórias de Misalva nada tinha a ver comigo. Ela era virgem, recatada, apaixonada pelo padre. Cortava os pulsos para cortar os impulsos. Será que deveria cortar meus impulsos? Ou será que vivo cortando meus impulsos? Misalva me dava medo no início, aquele olhar era a personificação da catarse em minha mente.
Se pudesse desistia de atendê-la. Mas como dizer a ela que me causa pânico? Devo arrumar ua desculpa, dizer que vou me afastar das atividades, indicar um substituto? Ou assumir que os meus sonhos são meus e Misalva é reflexo do meu inconscente.
Despertador esgoelando. Hora de atendimento.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 23/09/2020
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