Você tem que discriminar!

O que se passa a seguir é uma prova de como, até numa aula de exatas, se pode ensinar intolerância.

Quando, na adolescência, eu era aluno de Escola Técnica, tinha problemas com provas de física. Eu sempre adorei poesia, mas ao contrário do que o senso comum possa pensar e, modestamente falando, eu também era bom em exatas. Amava a matemática como o lirismo da natureza, pois ela é diversa e simbólica! Você não ver um 4 andando por aí, ver? Ele é uma criação de nossa alma pensante! E existem várias formas de expressão de um mesmo resultado. Alguma semelhança com a poesia?

Mas havia um professor que há duas gerações de aluno era considerado Bastião Máximo do Ódio Pela Física, tanto pelo jeito impaciente de ensiná-la como pela porca utilização de neologismos depreciativos e de dissimulado preconceito contra os alunos. Ele tinha as seguintes falas:

Para um negro: “Está na hora de alguém finalmente mostrar a força de sua raça nas minhas provas. Ainda estou esperando.”

Para uma menina: “Você não está ajudando a diminuir o preconceito contra mulheres em exatas!”.

Para um aluno de baixa renda: “Quando eu era aluno pobre fazia cálculo até em papel de pão. Não tem papel suficiente na sua casa não?”.

Para um homossexual: “Dever ser difícil se concentrar em cálculos quando todo mundo te olha estranho.”.

Ele se gabava do fato de alunos excelentes em outros colégios se revelarem, nas palavras dele, academicamente DEFICIENTES em suas aulas.

Acho que ele teve o mérito de indiretamente me introduzir conhecimentos em psicologia como, por exemplo, a máxima freudiana: “Quando João fala de Pedro, sei mais coisa de João do que de Pedro”. E minha filha, que foi a 4º geração de seus alunos, teve a infelicidade de reaprender essa máxima.

Pois bem! Fui fazer uma prova de movimento retilíneo uniforme ou, como os colegas diziam: “cálculos para a melhor rota de fuga da aula de física”. E a formula era bem batida: ‘s=so+vt’ com: ‘s’ = espaço, ‘v’ = velocidade, ‘t’ = tempo. Como eu era obcecado por matemática, coloquei: ‘x’ = espaço, ‘y’ = velocidade e ‘w’ = tempo. Tinha também explicando essa nomenclatura em todas as questões que exigiriam a fórmula.

Encerrada a avalição e revelado o gabarito, fui conferir o resultado com os colegas. Acertei todas e na sala já se gritava aos quatros ventos que eu seria o primeiro aluno, em 15 anos, a esfregar um 10 na cara do Cão Miúdo. Era só esperar o grande dia.

Bom! Ele também era cão de guarda do vale de lágrimas da entrega dos resultados. E estranhamente o pit bull do T1000 segurou minha prova para ser entregue por última. Das duas uma: ou cão estava dócil e com a vacinação em dia ou com uma nova cepa de hidrofobia. E, na época, o Ministério da Saúde teve seu orçamento cortado. Aguardei com uma paciência digna de um Jó em Auschwitz.

O professor se levantou e chamou todos os alunos para ministrar uma aula de tragédia grega só que com o olhar dele transformando a Medusa em pedra. A minha pedra do calvário.

E saindo da cadeira, pinçando minha prova como se içasse todos os detritos do mundo, ele falou:

- Infelizmente alguns professores estragam seus alunos não ensinando os limites de suas próprias matérias. Você pode ser muito bom em A ou B não significa que você possa, ao bel prazer, mudar as regras de C por causa deles. Não se faz sapateado no meio de uma pescaria afastando as boas respostas que são os peixes! (Sério! Se ele não gastasse sua energia sendo um perfeito idiota como professor de física até que poderia ser perfeito idiota em filosofia.)

- Não é bom em um prova nem demonstrativo de equilíbrio mental. (Qual equilibrado eu estava para aguentar essa última frase.)

- E aconteceu isso com nosso criativo Richard. Os professores de matemática e literatura o elogiam muito. Mas, sinceramente, eu ensino para vida e elogios nunca serão melhores que criticas construtivas (eu diria: entulhos na betoneira). Prefiro segurar os muitos elogios que quero dar a vocês a estragar seu desempenho acadêmico que ainda é severamente insuficiente e, por isso, fico calado. (Juro que, pela cara de nojo e as narinas levantadas, pensávamos que, na verdade, ele ficasse calado para rastrear um peido).

Eu já estava como sangue nos olhos suficiente para abastecer um hemocentro quando ele continuou:

- Entenda, meu caro Richard, ‘s’, ‘v’ e ‘t’, não são a mesma coisa que ‘x’, ‘y’ e ‘w’. Alguém há mais de 400 anos nomeou-os assim por algum motivo. Por respeito a essa pessoa, que fez mais pela física que nós dois, é que, das 5 questões que compunham a prova, eu só considerarei 1 sua correta. Sua nota é 2!

- 2!

Falei como quem abre um pote de sorvete e se depara com o feijão queimado na sacanagem com o caroço no angu! E retruquei:

- Professor! Mas os cálculos estão absolutamente corretos e os resultados conferem!

Eu nunca fui de implorar nada a professor nenhum e estava disposto a aceitar meu erro, ainda assim sua expressão de Cão Cérbero esperando o osso me fez negociar.

- Então, professor, considere as 4 questões meio certas. Você mesmo viu que os cálculos e os valores dos resultados estão corretos e eu expliquei o que representava ‘x’, ‘y’ e ‘w’. Eu merecia ao menos um 6.

Agora ele estava sorrindo como se tivesse mordido minha jugular.

- Eu nunca fui de voltar atrás para o bem do caráter de vocês.

Nem as suas 3 ex-esposas foram de voltar atrás nos divórcios e lhe deram excelentes aulas de divisão na matemática financeira, de ciências jurídicas e provavelmente de caráter. Mas continuou:

- Sinceramente, desde que comecei a lecionar, nunca encontrei um aluno que entendesse o rigor do meu ensino e se esforçasse adequadamente. Sonho com um aluno que tirasse um 10 e, por pouco, você não foi esse aluno.

Até aí eu já havia aceitado meu destino. Nunca tinha tirado um 2 na vida. Mas eu era de respeitar a autoridade de um professor. E continuaria assim! Se não fosse o que ele, sabendo da minha paixão por literatura, diria a seguir:

- Você tem que começar, senhor Richard, a respeitar as nomenclaturas da física. Não podemos, como dizem em outras matérias, expressar-nos de formas diferentes. Tudo tem uma razão de ser e uma discriminação adequada.

E finalmente, ele fez meu cálculo diferencial achar o seu limite:

- ‘s’ é diferente de ‘x’. Você tem que discriminar! Mesmo que, num trabalho, entreguem o mesmo resultado. Prova de física não é lugar de poesia. Você entendeu?

Sim! E como entendi. Vindo de qualquer outro professor, eu receberia com serenidade. Mas dele, que tinha um desprezo hermeticamente polido por seus alunos, podia ver quais variáveis humanas estavam por trás daquele ato falho.

“Negro é diferente de branco. Você tem que discriminar! Mesmo que, num trabalho, entreguem o mesmo resultado.”

“Mulher é diferente de homem. Você tem que discriminar! Mesmo que, num trabalho, entreguem o mesmo resultado.”

“Pobre é diferente de rico. Você tem que discriminar! Mesmo que, num trabalho, entreguem o mesmo resultado.”

“Gay é diferente de hetero. Você tem que discriminar! Mesmo que, num trabalho, entreguem o mesmo resultado.”

Era justamente pessoas como ele que cresceram em mim a ideia da escola como FIEL DEPOSITÁRIA DA MEDIOCRIDADE HUMANA e o que viria depois:

- Professor?!

- Sim?!

- Realmente lamento por não ter me esforçado como deveria. Nunca fui disso.

- Certo Richard.

- Não devo fazer poesia num prova de física.

- Sim! Mas é claro, né!

- Mas antes de rematar esse meu execrável hábito.

- Aff! Prossiga!

- No píncaro da capacidade do meu âmago, dir-te-ei um efusivo, coloquial, RETÓrico e retumbante: VÁ TOMAR NO CU!