O dobre dos sinos

A doença não era novidade, há muito: apenas um modo de ser, uma invenção do corpo. Pregava os olhos avermelhados no teto, buscava sinais. Sempre a febre, acocorada em um canto do quarto, esperando o final da tarde, a luz partindo, o dia em fuga rápida. Havia um consolo somente, que era lembrar (espantoso que conseguisse) de um tempo anterior às febres e à morfina. Dias de verdade, afinal.

Como um sonho mal sonhado, vinham as sombras habitar o negrume entre o cérebro e os olhos, intermináveis. Coisas mortas como igrejas ou estradas distantes, mortas como pássaros que ninguém vê, como folhas, corações partidos, telefones mudos, tiros na cabeça. Uma lâmpada triste pende do teto e moscas copulam no fio. Do líquido amarelo-esverdeado que escorre do ânus sem cessar, desprende-se aquele cheiro. Nos escombros das horas, nada, e possivelmente nunca.

As sombras, o tempo passado. A véspera. Sua mente se enchia de sol e de novo havia incontáveis minutos a redesenhar, como estrelas, areia, gotas. Um rio a transpor, vento e sons, um tamborzinho esquecido no jardim, mãos sujas, borboletas azuis, aranhas fazendo teia, roupa no varal, beijo na boca, pau duro, tortas de limão, contas a pagar, o cartão de ponto, maus poemas, bons poemas, a janela emperrada, álcool, projetos abandonados, cigarros pós-coito, calendários, papéis e canetas, música, o limbo das coisas. Saudade? Sim. De qualquer evento, rosto, bobagem, cicatriz. Febre.

Merda.

De súbito, a cama, as feridas feias nas costas, as entranhas meio comidas pelo câncer: o hoje. Sentia nas pernas o líquido escorrendo. Para sempre. Era a dor. Pé ante pé, a mãe, velhíssima, entrou no quarto com um lenço tapando o nariz e a boca. Perguntou ao filho se queria algo. A voz abafada de lenço e de profunda tristeza.

- Morfina, mãe.

- Só isso?

- Só.