Caixas de lembranças

André estava no porão da casa que morava, retirando as coisas que acreditava não precisar mais. De repente, aquele cômodo entulhado de caixas e de badulaques não mais lhe satisfazia, ao contrário, dava à casa o aspecto de mal cuidada, de um dono relapso na manutenção.

Não era assim: habilidoso no trato com as ferramentas, madeiras e outros itens, esmerava-se para sempre estar satisfeito com sua habitação, as coisas na mais perfeita ordem, em prateleiras, estantes e armários, muitos de sua própria confecção.

Quanta coisa estava ali! Brinquedos não usados de seu sobrinho agora adolescente, móveis que jamais utilizaria novamente, livros que resgataria alguns e caixas, muitas caixas, de seus guardados pessoais.

Para os brinquedos, a destinação seria uma casa de caridade; para os livros, a biblioteca pública depois de consultado os amigos e para as coisas pessoais... bem, para as coisas pessoais costumava utilizar-se do fogo, transformar tudo em cinza, em "desmemória", como costumava brincar.

No entanto, era necessária uma seleção criteriosa e feita sem a menor pressa já que algumas coisas remontavam à algumas décadas. Tinha consciência (ao menos supunha) da absoluta necessidade de guardar as coisas que consistiriam em sua própria memória: fotos, cadernos, textos, tentativas belas ou risíveis de expressão.

Pegou o estilete e abriu a primeira caixa na qual estava anotada da data "1980". Sabia o que dali emergiria, perfeitamente. Tudo gritaria o nome Adriana, sua primeira paixão. Como riu quando leu os textos que rabiscava nos cadernos! A passagem do tempo, das convicções, do sentimentos e principalmente das pessoas, deixa sempre uma marca indelével.

Lera , num livro de Anaïs Nin, que a personagem sentia-se como uma árvore cujo tronco tinha dezenas de anéis. Em um contexto diferente, era assim que sentia-se. Pôs-se a selecionar os textos, jogar fora algumas apostilas antigas e que não havia sentido manter.

Em seguida, outra, que o remetia a sete anos depois, morando longe da sua cidade de origem e que continha nomes que ainda faziam parte de sua vida, outros que jamais veria novamente e um nome que representou a ausência definitiva. Olhou os poemas, a letra, sentia novamente a materialidade da doce poetisa caída. Chorou. De repente percebeu que não lidava bem com as crises e separações, o que dizer da definitiva. Mesmo assim, guardou tudo de volta, exceto alguns papéis que não considerava dignos de serem mantidos.

Mais uma data: 1996. Em um primeiro momento, decidira queimar a caixa fechada já que ela o remetia ao passado de casamento que queria esquecer. Esquecer para quê? Porque? Era seu passado, não haveria como negá-lo mas apenas aprender a viver algo diferente.

Abriu a caixa e a primeira coisa que viu foi seu álbum de casamento. Vasculhou as fotos sem emoção, com um alívio que tudo tenha acabado. Decidiu apenas queimar algumas coisas bobas e deixar muitas ali, como testemunho.

Sem saber porque sentiu-se leve. Aquilo era parte dele, sua herança íntima. Caixas e caixas que guardavam o testemunho do que fora. Decidira mantê-las e acrescentar outras, testemunhas do seu novo tempo.

Saiu do porão, contemplou o jardim como havia contemplado o jardim da vida. Colheu um maracujá maduro, como agora colhia os seus frutos íntimos. Adicionado ao açúcar benéfico da mansetude, a vida produzia um suco gostoso de ser sorvido. Que assim fosse dali para frente!

André Vieira
Enviado por André Vieira em 26/10/2007
Código do texto: T710532