Aberração

Na fronteira entre a vida e a morte é fácil ceder no apelo demoníaco de mais uns minutos na pele revestida de vida artificial. É certo que a memória se resume a um mero pesadelo, mas o pacto esse permanece válido até à destruição total de uma das partes. Assumindo que o corpo enfraquece a alma é fácil perceber quem vai sofrer as consequências de uma aliança quase nunca regida pela verdade dos factos. Talvez por isso lhe fosse poupada a dor consciente de forma a apenas ter memória do momento antes do impacto. Assim, permaneceu em coma durante seis meses em que, fora do seu corpo, ia notando cada presença e seus propósitos.

Nesse limbo, sem sequer poder respirar pelas memórias que o percorriam, arfava, e o suor, sugestionado, caia-lhe pela cara abaixo. Era fácil tornar esta acusação credível, até porque a fé, desaparecida, parecia ser uma mera palavra, tantas vezes repetida sem que o amor que consumia cada poro ganhasse qualquer tipo de consistência, pelo que se deixou arrastar até às profundezas da vulgaridade onde jaziam sem apodrecer almas sem destino, corpos sem desatino. Pensava nas complicações cósmicas da junção do seu corpo partido em dois, cara deformada pelo choque e futura insensibilidade pelos gostos requintados de quem não lhe dizia nada. Tornava-se algo assustador pensar que vender minutos de vida para fintar a morte tinha como preço a vida vulgar de autómato que lhe dava tanto asco.

A aparência normal, dentro de parâmetros inventados por seres totalitários, escondia um ser cuja noção de sensibilidade alheia se resumia à satisfação das suas próprias necessidades, enganando conforme a necessidade de possessão alheia ao seu corpo, assentando as poeiras sobre a perene necessidade de ter nano seres a tomar conta das desgraças presentes à volta dos corpos sempre desprevenidos das últimas novidades em matéria de vírus. Era apenas uma ideia a juntar à vontade de tornar realidade a erradicação das coisas simples com que haveria sempre que contar, em todas as encarnações de almas que urgia deixassem de ser imortais.

Entretanto e para saciar a vontade de poder ia tentando imiscuir-se em certas organizações de estatutos secretos e públicos de feitos pelo rumo que davam ao país. De certa forma era um sonhador como qualquer outro se bem que apenas o livro do Apocalipse enchesse as suas medidas desmedidas. Na proporção do crescimento da vontade de seguir o caminho pérfido que um dia concretizará o final do mundo conhecido, era evidente o desconforto dos invisíveis guardiões de um templo constantemente profanado. Através da persistência e corrupção de ideais acabaria por abrir uma porta que daria acesso ao verdadeiro paraíso na Terra sem pensar no seu próprio sacrifício e num demónio que lhe guardasse a alma em troca de uns míseros minutos de vida, que em nada o beneficiariam.

de 19/11/2009 a 23/11/2009
Manuel Marques
Enviado por Manuel Marques em 06/11/2020
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