Sobre a última comunista que se deitou na minha cama

Eu estava sentado na frente do computador, encarando a tela em branco do editor de texto, sem saber o que escrever. Mesmo assim eu insistia em ficar ali, esperando que milagrosamente alguma ideia surgisse pra me salvar daquela noite sem inspiração. Então, ouvi o barulho da porta se abrindo e depois de alguns segundos, Laís apareceu. Inquieta, ela atravessou a porta do meu quarto, com um cigarro aceso nos dedos, se jogou na cama e ficou de barriga pra cima, fumando e olhando para o teto. Passei um bom tempo observando enquanto ela estava ali, pensativa, balançando os pés para um lado e para o outro.

- A morte não redime ninguém de pecado algum. – Ela disse finalmente, enquanto soltava a fumaça pra cima.

- E você acredita em pecado?

- Eu falo erros de modo geral.

- Entendi.

- As pessoas tem a tendência de esquecer as merdas que uma pessoa fez em vida depois que eles morrem.

- Acho que é por ai mesmo. Mas por que isso?

- Minha mãe perdoou todos os erros do meu pai depois que ele morreu. As traições, as grosserias, as mentiras. Pra ela, hoje ele é um tipo de santo. Ninguém pode falar dele, nem das coisas erradas que ele fazia.

- Pelo jeito isso te incomoda muito.

- Não te incomodaria?

- Não sei.

Laís então se sentou na cama e ficou me olhando.

- O que você está fazendo? – Me perguntou.

- Me torturando.

Ela riu, tirou outro cigarro e acendeu no que restava do primeiro.

- Não consegue escrever?

- É. Às vezes acontece.

- Você devia deixar pra lá então. Não adianta forçar certas coisas.

- É verdade.

Laís se deitou bem na beirada da cama e ficou me olhando, com a cabeça pro lado de fora, e os cabelos quase encostando no chão.

- Mas por que esse papo de morte? – Perguntei.

- Eu só estou de saco cheio de ouvir certas coisas lá em casa... Eu tenho que ser isso, tenho que ser aquilo. Por que minha mãe vive repetindo o que meu pai dizia sobre a necessidade de ter um curso superior pra ser alguém na vida... Ou de trabalhar pra comprar um monte de coisas que sinceramente não me fazem falta.

- Entendo muito bem o que você está dizendo. Comigo foi do mesmo jeito.

- Estou cansada dessa mesquinhez toda, saca? As pessoas só querem saber de comprar, comprar, comprar. E pra isso todo mundo tem que se vender. E isso já virou algo normal.

- Bem vinda à sociedade capitalista, meu amor.

- Eu queria era ter nascido no tempo do Marighella... Ali você via gente disposta a fazer alguma coisa, além de ficar discutindo teoria na internet, como se faz hoje.

- Mas não era um tempo lá muito fácil pra ser Marxista. Minha mãe teve um primo que foi torturado e exilado por causa disso. Sem contar as pessoas que morreram.

- E hoje é fácil por acaso?

- Pelo menos não é crime falar de comunismo.

- Eu não quero um pelo menos. Não sou uma mulher de se conformar com meios termos.

- Eu sei. Tem sido realmente cansativo ser brasileiro. Não bastasse todo aquele papo de neoliberalismo, privatizações, Estado mínimo e o caralho a quatro. Agora a cadela do fascismo além de prenha, está dando cria todo dia por ai. E há quem ache normal.

- É. É um inferno mesmo. A vontade que dá é explodir uns bancos, ou mandar todas as empresas de cartão de crédito pro espaço, como fizeram em Clube da Luta.

Não consegui segurar uma risada, deixei o computador de lado e me sentei junto a Laís.

- Você até que me lembra Marla Singer... a mina do filme.

- Você tá me dizendo que eu tenho cara de doida?

- Talvez um pouco.

Laís se levantou pra me olhar de perto e depois se sentou com as pernas cruzadas bem no meio da cama.

- Tá. Vou considerar como elogio, só por que veio de você. Mas o caso é que às vezes tenho vontade de pegar minhas coisas e meter o pé na estrada.

- E pra onde você iria?

- Não sei. Acho que ia simplesmente viajar por ai. Você não gostaria?

- Acho que tenho raízes demais pra algo assim. Mas já me passou pela cabeça algumas vezes quando era mais novo.

- Você se acha tão velho... ainda tem tempo pra você viver muita coisa.

- Quando você chegar na minha idade a gente conversa.

Ela riu e soltou a fumaça na minha direção.

- Quando eu tiver sua idade, você vai ter quase cinquenta...

- Você faz soar pior do que já é...

- Não seja bobo. Fazer cinquenta anos não é o fim do mundo.

- Mas já é mais do que meio caminho andado pra a cova.

- Não sei. Não acho que eu vá chegar aos cinquenta. Do jeito que eu fumo... seria sorte se eu passar disso. E na verdade nem faço questão.

- Você tem que estar viva pra ver a revolução.

- Já quase perdi as esperanças de ver algo do tipo por aqui. – Ela falou, jogando a bituca de cigarro pela janela.

- Eu guardo sempre 1% de otimismo comigo. E às vezes ainda me surpreendo com as probabilidades.

- E quando foi a ultima vez que algo assim te aconteceu?

- Na noite que te conheci. Foi um completo acaso. Eu deveria estar em outro rolê naquela noite, ou na melhor das hipóteses, bebendo em casa sozinho. Mas as probabilidades resolveram brincar comigo.

Laís sorriu, se aproximou e me beijou.

Com as mãos presas na minha nuca ela me puxou mais pra perto.

O gosto de cigarro era forte na boca dela, junto com vinho e pastilha de menta.

- Você é um cara muito estranho, sabia? – Ela sussurrou.

- Já me disseram isso algumas vezes.

- Eu sou péssima com qualquer coisa que dependa de sorte. Espero que não seja o nosso caso.

Laís tirou a camisa, expôs os seios e se deixou cair na cama. Eu não precisava de uma revolução. Não precisava de muito mais do que eu já tinha. Talvez só um pouco mais de inspiração pra seguir enchendo minhas páginas com palavras e sentimentos que soassem minimamente reais. Mas ao lado dela, eu sabia, era só uma questão de tempo para que as coisas voltassem a fluir nesse sentido.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 22/11/2020
Código do texto: T7118232
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