Um abandono só

Manhã de dezembro, chuva batendo na janela, vento agitando as árvores, solidão. No escuro do meu quarto eu sinto o sol ainda vergonhoso adentrar mansamente pelas frestas da velha janela. Aqui dentro a pintura descascada das paredes e o cheiro ruim de mofo. Tudo está caindo aos pedaços. Levanto de vez e quase caio, a culpa são das coisas espalhadas pelo chão: restos de roupas, pares de sapatos e pedaços de um tempo que infelizmente não voltarão jamais. Retratos, cartas de amores antigos, das saudades dos amigos que foram um dia, mas que hoje não passam de uma vaga e perniciosa lembrança.

No banheiro aquele espelho quebrado. Resultado de uma noite de bebidas e de um acesso de fúria. Descontei no meu reflexo toda a minha raiva por não ter podido fazer algo melhor sobre eu mesmo. Idiotice. Cabelos penteados para trás, um pouco de gel para dar aparência de limpo e borrifos de perfume debaixo dos braços; cheiro insuportável.

Na mesa da cozinha o que restará do jantar de ontem, na geladeira algumas latas de cerveja, uma delas aberta, com o liquido ainda lá dentro me chamando, implorando pelo último gole; um desatino.

Desvio o rosto, respiro fundo e com toda a pressa do mundo eu saio dá li. A porta fechada atrás de mim, a chave girada duas vezes, enfiada no bolso direito da calça e mascará de um personagem infantil enfiada na cara, desilusão. Dentro do ônibus ninguém se percebe. São vários olhos vigiando e sendo vigiados. São fofocas sobre a vida da vizinha; reclamação do salário ruim pago pelo patrão e preocupações e preparativos para as festas de final de ano; ninguém está aí para nada.

Eu não me importo mais com a vida, estou em estado total de abandono; seja o que deus quiser. Mas ele não tem que querer; quem tem que querer sou eu. Que acordo todos os dias desanimado, reclamando da vida e achando que até as coisas certas estão errada; divagação.

Tarde da noite. Em pé, da janela do meu quarto, eu observo o movimento frenético das ruas; barulho de buzina, gente chamando por nomes que eu não compreendia. Fecho as janelas e puxo as cortinas e depois as cobertas. Está frio, lá fora e aqui dentro. A culpa lá fora é da falta de calor humano e de cobertores quentinhos; aqui dentro a culpa é do mofo e da minha falta de vontade; um abandono só....

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 13/12/2020
Código do texto: T7134733
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.