A ilha e o epitáfio

Sinto-me claustrofóbica em meu próprio corpo nauseante; trancafiada dentro de minha carne e segurando-me nas grades dos meus pensamentos torpes. Meu coração espanca-me violentamente, e a vida de súbito mostra-se crua diante dos olhos. Desde o começo da pandemia e do isolamento físico, certos excessos dilatam dentro de mim, mas agora eles soam insuportáveis, pois a vida nunca esteve tão cruel e barulhenta, dado que, a minha sensibilidade ao mundo cresceu significativamente; talvez minha consciência tenha se expandido até meu corpo tornar-se apertado demais para todos os acúmulos internos.

O fato é que debato-me no espaço que me sobra, e enquanto tento recuperar o fôlego, fito as ruas através da janela; os corpos humanos caminham em uma fragilidade cega; muitos carregam a morte dentro de si, mas todos trazem o perigo e a exposição; trazem certo calor que anseio, e por outro lado sinto aversão.

Ser humano parece demasiadamente perigoso, amar e ser amado, caminhar tão exposto por entre as avenidas, tudo isso soa-me violento. Talvez o meu medo de ser dessa espécie e caminhar por entre ela, tenha aumentado desde que precisei me recolher em meu apartamento. Há meses não vejo rostos conhecidos, tão pouco toco em alguém; eu que sempre amei a solidão e tive receio de me conectar com outrem, agora encontro-me em um naufrágio, encalhada no mais fundo de mim.

Ouço o telefone tocar em uma melodia estrondosa; há semanas não o atendo; ouvir a voz de um conhecido me faz lembrar da distância e realça a minha ansiedade. E de que adianta entrar em todas as redes sociais e fitar um simulacro? Um mundo tão perecível e frágil? Tudo tornou-se assombroso, e talvez por defesa, isolei-me emocionalmente da vida que outrora chamava de minha.

Entre os meus arredores tudo parece diluído em profundezas intocáveis: as minhas experiências, o vento, as memórias, tudo molha as bordas dos meus pensamentos e escapa por entre os meus dedos, como algo distante e fluído demais para ser verdadeiramente sentido. A verdade é que tenho uma relação simbiótica com a sombra da solidão, principalmente agora que fui abruptamente empurrada para os braços dela.

O telefone toca mais uma vez e o som é ainda mais ensurdecedor; talvez eu deva atende-lo, pois existem pessoas que me amam em algum lugar desse mar de concreto. Mas céus, amar é estar exposto! Não posso abandonar a ilha que me prende e protege de todo o açoite da vida. Até já me esqueci como se vive.

O silêncio é tirânico, pois ele testifica uma voz que definha em minhas entranhas. Mas para que viver sem propagar ideias? Que espécie de vida inútil essa que tenho abraçado passivamente! Minha impotência é o meu incômodo mais profundo; ela que aponta a covardia de um distanciamento da vida; a estagnação camuflada de solitude. Distanciar-me fisicamente, significaria morrer em meus medos e isolar a consciência do mundo? E assim travo meus embates, sabendo que é normal estar enferma em tal apocalipse social. Ainda sim, tal contexto levou-me a indagar a febre que há anos trago no peito e que agora inflama em demasias: o silêncio e o medo das conexões humanas.

Arrependo-me de todos os meus silêncios coniventes e de todo o resguardo de uma vida por si só instável. Durante meses sozinha, eu li e pensei muito; produzi ideias dignas de compartilhamento; descobri partes minhas, tesouros soterrados. No entanto, não compartilhei sequer minha voz, eu nunca o faço, mas tudo isso se acumulou por tempo demais. Paradoxalmente, não consigo atender o maldito telefone e continuo a tremer frente a possibilidade de libertar tudo o que se debate dentro de mim.

Talvez eu devesse ligar a TV e assistir o mundo perecer em chagas respiratórias. A asma política, a asma humana. Besteira! Isso realçaria meu colapso.

Enquanto escrevo essas minhas anotações esparsas, fito o quadro de José; desde que ele se foi, tenho me viciado na solidão da velhice. A angústia nunca morre em meu peito, mas sinto até mesmo ela se afogar em meu sangue cancerígeno; a doença que aos poucos exaure minhas forças e enudece o que não fiz em vida.

Penso que José ainda vive; ele é apenas mais difícil de ver do que os outros, sempre foi assim, parte de sua raridade existe na falta de nitidez que ele sempre evocou em vida. As vezes o sinto por perto, dentro de meus pensamentos, pois há muito dele em mim. Ah sim, existe outras formas de viver; ideias e convívios possuem o dom da imortalidade.

Sinto-me enfraquecida, e ao olhar através da janela, capto uma borboleta rompendo seu casulo; a violência do renascimento transborda-me os olhos e me faz escorrer tudo o que confinei no mais fundo de mim. No exato momento em que escrevo, minha consciência rasga tua crosta de solidão e executa teu voo mais livre. Sem que eu ao menos me mova, saio da ilha em que vivi por anos.

Em minha fraqueza encontro a força mais sadia que jamais tive, mas receio não poder continuar registrando minhas atividades mentais agora, já que um enorme aperto esmaga-me por dentro, de certo preciso me deitar.

Anotações:

Escrito encontrado na mesa de minha falecida mãe, provavelmente foi seu último registro.

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 21/12/2020
Código do texto: T7140586
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