Fechando a câmera.

Era um menino de olhos quase negros olhando atentamente para a professora enérgica e que causava calafrios! Uma folha arrancada do caderno debaixo de gritos! Não era do seu caderno. Os colegas tremiam e ele, apesar das folhas não arrancadas de seu material, também se arrepiava como um gato diante da água fria. O menino aprendeu tudo em tempo recorde. Lia fluentemente em língua materna e já deduzira por conta própria o sistema decimal. O que o medo não faz a uma criança? Felizmente, ele conseguia não se bloquear ao estudar. Sofreu várias doenças infantis apesar dos cuidados da sua família. Talvez as tempestades pedagógicas fossem menores e menos incômodas do que a sua hepatite... Ele buscou outros caminhos para driblar a morte mesmo sem saber jogar futebol. Se reinventou no papel.

Foi durante a aula de Ciências. Dessa vez, ele mesmo arrancara folhas velhas dum caderno velho e as cortara em pedaços pequenos. Unira os pedaços com barbante de ráfia e fizera o seu primeiro livro. O livro de Botânica ou Biologia: como queiram. Ele nem sabia o que era Biologia ao certo, mas ouvira os garotos mais velhos estudarem isso. Devia ser importante. De Botânica ele entendia. Já criava jardins em casa aproveitando os desníveis do terreno e criando pequenos charcos onde viviam os papiros. Outros cantos úmidos era a terra dos musgos. A lateral da casa era a mata dos galhos secos. E os fundos era o grande bosque, onde um dia, ele jurou: “Vou ver a neve cair!” E o livro cabia na palma de sua mão grande, mas ainda assim infantil. Havia uma rosa que ele comparou a um reino: a flor, a rainha; os espinhos os soldados. Mal sabia ele. Já sofria desse doença boa chamada poesia só descoberta décadas mais tarde.

Os anos do fundamental se foram. Veio então o segundo grau. Curso técnico. Precisava trabalhar e ajudar a família a não precisar ajudá-lo. As disciplinas técnicas eram vistas com outro olhar. Seus colegas já notavam. Para ele era naturalíssimo participar do laboratório de teatro como ensaio para uma entrevista de emprego ou a futura encenação de convencimento do cliente perante um projeto mirabolante de arquitetura. Ensaiou saltos triplos e foi cair no meio da Fazenda Africana, de Isaac Dinesen, entre dois amores: a literatura e o cinema. Conheceu Meryl Streep! Depois Glenn Close, John Malkovich, Jeremy Irons, Robert De Niro... Descobriu que o Brasil também tinha seus astros: Zezé Mota, Walmor Chagas e Elke Maravilha em Xica da Silva, Gianfrancesco Guarnieri e Bete Mendes em Eles não usam Black-tie. Os problemas e as cores do Brasil eram diferentes do pintado por Hollywood e demais cinematografias estrangeiras.

Ele saiu do cinema e foi para a vida real protagonizar o papel de auxiliar administrativo mil e uma utilidades numa empresa de engenharia. Era a via-crúcis! A Odisseia! Caifás e Posseidon em fúria contra o magrelinho da pasta de couro vivendo peripécias na sua Via Dolorosa. As reformas nas empresas contratantes ficavam excelentes. Existe até hoje um convento e sua capela reformados pelas mãos dos seus colegas de trabalho e mestres de obras e vida. O rapaz aprendera a utilizar champanhe no arroz com um pintor responsável pelas sancas do santuário, lugar parecido com o Céu no meio de vários edifícios. O rapaz continuava a ver palavras e sons e imagens nos canteiros de obra e diante das mesas dos diretores.

Escondido ele se inscreveu no vestibular e foi para a Universidade. Adivinhem o curso? Letras! O inferno de manhã, o purgatório de tarde, o céu de noite no campus. Outro dia, outra sequência inferno, purgatório e céu. Cinco dias por semana. Onze meses por mais seis anos.

Novamente às escondidas, o concurso para professor. Aprovado! Jornada tripla: escritório de manhã, sala de aula à tarde, pós-graduação à noite. Essa situação não durou muito. Em junho do primeiro ano como professor, ele se libertou dos grilhões do escritório. Mal sabia ele as memórias desse tempo o perseguiriam para sempre. Mas agora só

duravam alguns minutos durante o sono. A redenção vinha pela manhã.

O tempo foi passando e ele vivendo o seu magistério. Queria fugir dele, mas não conseguia (e não queria conseguir). Sujou as mãos no giz por pouco tempo. Logo vieram os pincéis atômicos e os quadros brancos decretando a aposentadoria dos negros, que eram verdes. Do mimeógrafo para a fotocópia (vulgo xerox); da caneta para o teclado. O show continuava no palco de cada sala. A plateia lotada ora aplaudia, ora vaiava. Agora o virtual. O distanciamento, o isolamento social e o menino se vê novamente com medo não só de uma professora enérgica que o ensinou a ler e escrever, mas de inúmeros professores invisíveis como águia olhando do alto sua presa no campo.

A coragem tomou conta dele e o levou até a câmera. Do outro lado, seus aliados e jovens professores. A interação venceu o medo e as descobertas se fizeram. Sinto de novo o frio na espinha. Qual o resultado deste ano de intensos recados nas redes sociais e bombardeio de notícias repetitivas e contraditórias de uma situação ímpar na História da Humanidade?

Fechando a câmera!

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 22/12/2020
Reeditado em 22/12/2020
Código do texto: T7141490
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