CONTO DE NATAL.

Nos natais da minha infância, lembro-me bem, os únicos presentes que eu ganhava eram os que o Rotary Club da cidade costumava dar para a garotada pobre. Parece que só havia gente pobre na minha cidade, naquele tempo. A fila quilométrica de crianças macilentas e mal vestidas, descalças, ou quando muito, usando alpargatas-roda (aquele calçado feito de lona com sola de corda de sisal), abraçava dois quarteirões do centro, antes de ser engolida pelo maior cinema da comunidade, onde todos os anos, os companheiros rotarianos davam esse presente para a molecada. 
Usei essa metáfora porque me lembrei que era assim mesmo que eu via aquela fila enorme que sumia de vista. Ela parecia com aqueles truques de palhaço que a gente via no cirquinho que todos os anos era montado em um terreno baldio em frente ao campo do Sete de Setembro, o time de futebol do nosso bairro. O palhaço engolia uma fita branca de vários metros. A fita desaparecia na boca dele e depois era tirada pela orelha, aos poucos, junto com moedas que tilintavam ao cair no chão, borboletas que voavam, pipocas e por fim uma pomba branca que ficava voando pelo circo todo até se aboletar em um poleiro que ficava bem na cumeeira do mastro central que suportava a lona. Claro que era apenas um truque, mas era bonito. E era assim que eu via aquela fila de crianças entrando no cinema para pegar o seu brinquedo de natal. Ela entrava de mãos vazias, como a fita branca do palhaço e depois saia com um brinquedo colorido, como as coisas que saiam da orelha dele.
Minha família nunca teve o costume de trocar presentes no natal. Claro, pois ninguém podia comprar. Mal se conseguia um frango para assar no almoço do dia. Engraçado que era todo ano a mesma coisa. A macarronada, o frango assado, o pão frito com ovo,  canela e outros temperos, que a gente, para dar um certo charme, chamava de rabanada, a salada de alface com cebola e tomate, a Tubaína de litro, e como insubstituível sobremesa, a melancia. E uma ou outra garrafa de vinho Sangue de Boi ou Salton, que os adultos tomavam como se fosse um Chateauneuf du Pape da melhor safra. Mas tudo era uma felicidade só, como se não houvesse nada melhor no mundo do que aquele almoço de natal. 
E depois do almoço, o cineminha. A seção era bancada pela Loja Maçônica da cidade. A entrada era de graça. Criança saindo pelo ladrão. Até hoje não consegui entender como cabia tanta gente naquele cinema. Acho que pelo menos duas mil crianças se fundiam umas nas outras para ganhar presentes e assistir, todo ano, ao mesmo filme: Marcelino, Pão e Vinho. 
Não me esqueci, até hoje, daquele filme. Marcelino é um menino órfão, de sete ou oito anos, adotado por um grupo de frades de um mosteiro em uma aldeia no interior da Espanha. Ajuda os padres na missa, faz alguns serviços domésticos, é o chodó deles. Como é muito esperto e curioso, o menino gosta de mexer em tudo. Um dia ele vai ao sótão do mosteiro, lugar onde os monges sempre lhe disseram que não era para ir, pois tinha muita coisa amontoada lá e ele poderia se machucar. Mas sua curiosidade é maior e ele vai. A primeira coisa que vê é um homem todo mutilado, pregado em uma cruz. Ele olha para aquele rosto dilacerado, com o sangue correndo pela testa por causa da ferida feita por uma coroa de espinhos e imagina a dor que ele deve estar sentindo, com aqueles enormes pregos enfiados nas mãos e nos pés. A máscara de dor e agonia que aquele homem tem no rosto não deixa dúvidas de que ele está sofrendo muito. E ele parece estar com muita sede e fome. Por isso, a primeira coisa que Marcelino faz é buscar um pouco de água e vinho para matar a sede daquele homem. Depois trás um pedaço de pão. 
No dia seguinte ele volta com mais pão e vinho para o homem crucificado que, agora, já havia descido da cruz e esperava, sentado em frente á uma velha mesa, pela visita do menino que lhe trazia pão e vinho. Depois de mais algumas visitas Marcelino descobriu que o homem era uma espécie de mago que se mostrou capaz de atender todos os desejos dele. Pelo menos foi o que ele prometeu. O maior desejo do menino era conhecer a mãe. Todos os meninos que ele conhecia tinham mãe, menos ele. E foi assim que dias depois os monges, depois de procurarem Marcelino por toda parte e pela aldeia inteira, foram encontrá-lo no sótão do convento, sentado em uma cadeira em frente à velha mesa. Estava morto, já há alguns dias. Sobre a mesa restos de pão e uma caneca com sobras de vinho. Atrás deles, a cruz de madeira, agora sem a imagem do crucificado. E no ar uma atmosfera de beatitude e sagrada presença, como se o próprio Jesus estivesse estado ali.
A história do menino Marcelino é uma lenda cultivada no interior da Espanha até os dias de hoje. Ninguém sabe o quanto de verdade há nela, mas é uma tradição de muita força entre os espanhóis. Na verdade, todas as cidades do Ocidente católico têm a sua. Nós aqui em nossa cidade também temos a história de uma menina que morreu engasgada com pipoca. No dia de Finados muita gente visita o túmulo dela, pedindo por milagres. Há quem diga que já recebeu. A santidade, como todos os mitos, é arquetípica. Para quem acredita nenhuma prova é necessária; para quem não acredita nenhuma prova é suficiente. 
Evoquei essas memórias porque daqui há pouco estarei saindo para distribuir presentes de natal em uma creche, e depois, pelo menos até o dia vinte e quatro de dezembro, faremos, eu e o meu grupo do Lions Clube, a mesma coisa em vários outros orfanatos e abrigos de crianças carentes e órfãs. Agora são tantas crianças carentes e órfãs que não dá mais para reuni-las no cinema da cidade. Até porque hoje não há mais cinemas na cidade. Só pequenas salas em um Shopping Center, que não abrigariam nem a turma da creche que nós vamos visitar hoje. A população aumentou tanto daqueles tempos para agora, que nem mesmo reconheço mais a cidade onde cresci, vivi a minha vida adulta e desfruto a minha chamada terceira idade com a felicidade de ter passado por tantas agruras ontem e poder praticar hoje, a virtude da participação. 
Essas crianças são todas Marcelinos á procura de um pai e uma mãe. O meu pai morreu quando eu tinha oito anos. Mas eu tive a felicidade de ter uma mãe que não me abandonou e me ensinou a ganhar a vida com honestidade e eficiência. Por isso, quando chega o natal eu fico recuperando essas memórias. Apesar da minha infância e juventude paupérrima, eu nunca me senti órfão nem carente. E nenhuma criança se sentiria se as pessoas, como um todo, não tivessem perdido, nesta luta insana por um pedaço sempre maior do bolo, o seu sentido de paternidade e maternidade universal. Esquecemos que a humanidade é a mãe de todos e que nós todos somos a própria humanidade. Isso faz de todos nós outro tanto de Marcelinos, à procura de alguém que possa realizar os nossos sonhos. No fundo somos todos órfãos do natal. Lembrei-me agora de um tal de John Lennon, que cantava uma canção que dizia:

And so this is Christmas      (então é Natal)
And what have we done      (e o que você fez?)
Another year over                (Mais um ano se foi)
A new one just begun          ( e o novo só começou)
And, so Happy Christmas    (Então, Feliz natal)     
We hope you have fun          (Esperamos que você seja feliz)
The near and the dear one    (Os próximos e queridos) 
The old and the Young…     (Os velhos e os
jovens)

Feliz Natal para todos os recantistas