"Cuando salimos de Cuba"

FOZ DO IGUAÇU

O gerente da loja de chocolates tinha certeza de que o casal dormindo agarradinho ao lado da entrada para os banheiros não era da região nem tinha a ver com turistas. Chegaram num táxi do aeroporto naquela manhã gelada. Antes do nascer do sol, tomaram café com pão de queijo, foram ao banheiro e pediram permissão para cochilar ali, entre suas malas e mochilas até a chegada de seu táxi. A moça falava português com desenvoltura, mas com sotaque desconhecido. Entre si, falavam espanhol. Não eram argentinos nem paraguaios. Seriam venezuelanos? Cubanos?

Seriam integrantes da nova diáspora que, junto com os haitianos, busca abrigo na Terra das Cataratas? O gerente terminava seu turno, acertava o caixa e não viu o instante em que o casal embarcou num táxi com placa paraguaia e continuaram uma aventura iniciada há quase uma semana no aeroporto de Havana.

CUBA 1994

Camilo se lembra ainda vividamente daquela tarde de domingo, no tórrido verão de 94, quando Padrinho o levou para ver a balbúrdia armada na praia de Puerto Esperanza. Os olhos esverdeados e a pele triguenha de Camilo viam e sentiam a brisa marinha e o mar inquieto que, a qualquer momento, podia enfurecer-se e, com auxílio do vento quente e salgado, transformar qualquer celebração em uma tragédia indescritível.

Era verão, tempo de furacões. Os seus doze anos ainda não sabiam o que sua pequena Cuba representava para milhões de pessoas no mundo. Antes, celebrizada por Hemingway no pescador Santiago e seu marlim quase invencível, às vezes confundida com a mítica Atlântida, tornara-se símbolo da Pátria da Fraternidade. No entanto, era também um lugar contraditório, idolatrado por uns que sequer a tinham visitado e rechaçado justamente pelos próprios cubanos que, volta e meia, enchiam as praias de jangadas improvisadas para abandonar a terra natal. Terra povoada por escravos africanos e colonos espanhóis, perdeu sua herança indígena, exterminada pelos europeus. Rica de dança, esporte e música, Cuba pode ser tudo, menos um país sem personalidade.

Camilo tinha nascido na chácara do pai, em um lugarejo a poucos quilômetros de Puerto Esperanza, chamado El Gallito. Na região ainda havia pequenas propriedades privadas, chácaras que escaparam da expropriação indiscriminada dos primeiros anos da Revolução. Um vizinho de chácara, Santiago, da mesma idade de Camilo, se tornou seu melhor amigo. Quando chegou a época de estudar, Camilo mudou-se para a casa do avô e o amigo para sua própria casa em Puerto Esperanza e só voltavam a El Gallito, que não tinha energia elétrica, por alguma tarefa especial determinada pelos pais, como no caso do bezerro Montonero. Já maior de idade, Santiago mudou-se para Viñales, cidade turística, onde encontrou trabalho e já não se viam tanto. Muitos anos mais tarde, foram se encontrar em uma situação nunca pensada nesses primeiros anos de vida.

Chácaras como essas se autossustentavam com plantações de mandioca, cana de açúcar, matéria prima do rum, bebida de exportação, algum tabaco e criação de porcos e galinhas. Aí também havia bovinos, mas os bois eram somente para lavrar a terra e as vacas para dar leite e parir novilhos. O povo não podia comer carne de vaca, era privilégio dos turistas e, dizem, das altas patentes do Partido Comunista. Essa restrição foi aumentando a partir do fim da ajuda soviética, logo depois da queda do Muro de Berlim, sob a desculpa de que era preciso recuperar o rebanho bovino do país. Mesmo assim, muita gente se arriscava e criava e abatia gado clandestinamente, para consumo próprio ou para vender no mercado negro.

Naquele domingo de 1994, Camilo encontrara Padrinho na casa do avô e almoçaram juntos. Enquanto comiam, Padrinho conversava entusiasticamente sobre a vida nos Estados Unidos – esse entusiasmo e loquacidade não eram seu feitio, era conhecido por ser caladão - e elogiou aqueles que tinham tido coragem de abandonar Cuba e asilar-se nos Estados Unidos. Alguns deles haviam fugido quando a Revolução venceu, outros no êxodo dos “marielitos”, em 1980. Naquela outra maré de fuga, havia parentes e conhecidos preparando-se para aproveitar a nova trégua de Fidel e enfrentar a imprevisível viagem sujeita a naufrágios e ataques de tubarões no Estreito da Flórida.

Depois do almoço, Andrés – o tio materno de Camilo – o convidou para dar um passeio pela praia. Na inocência dos seus verdes anos, ainda assim compreendeu que aquela agitação era apenas mais um dos muitos capítulos do recorrente êxodo de cubanos para os Estados Unidos. Quando chegasse sua vez, seria muito diferente.

Naquele momento, porém, frente ao azul do mar caribenho, o pré-adolescente Camilo se assusta com a confusão e agarra-se às enormes mãos de Padrinho, receptor de beisebol e seu incentivador no esporte. Uma agitação de colmeia invade a praia. Gente vem e vai, alguns apenas acompanham de longe as ininterruptas saídas de balsas para a Flórida, acompanhadas de vivas, hurras ou choros de despedidas. São mães e pais, avós, irmãos e filhos partindo ou ficando, ambos os lados se lamentam. Na verdade, nem todas as balsas seguem viagem. Algumas dão meia volta, quando o piloto sente que sua improvisada embarcação não conseguirá atravessar o Estreito e retorna à segurança da praia.

Padrinho arrastou Camilo por todo lado, dizendo procurar Leonardo, um amigo escritor. Ao encontrá-lo, abraçam-se e iniciam imediatamente uma conversa sobre o tema daqueles dias: a travessia para a Flórida liberada por Fidel. Aliás, seria impossível falar de outra coisa, tudo ali tem a ver com a viagem. Quem caísse de paraquedas pensaria estar numa praia qualquer de um país capitalista: um grupo vende imagens da Virgem do Cobre com a garantia de não naufragar nem cair na boca dos tubarões brancos; outros comerciam água, bússolas, comida, chapéus, óculos de sol, cigarros, fósforos, lanternas; alguns improvisam tendas para despedidas de casais e outros investem em banheiros; até uma banda de rock, constituída quase totalmente por adolescentes, aparece e canta em inglês; comadres pegam o bonde e repassam as aventuras e desventuras de outros êxodos, como o mais famoso deles, o dos ”marielitos”.

O tema da conversa de Padrinho e o escritor são estratégias diferentes de chegar aos Estados Unidos. O escritor diz que muitos imigrantes escolhem ir pela Colômbia, atravessam a selva e cruzam o Panamá pelo pavoroso Tapón de Darién. Nessa rota, enfrentam traficantes, grupos guerrilheiros, indígenas, fazendeiros e policiais de fronteira. Todos querem aproveitar-se de sua vulnerabilidade de ilegais em trânsito. Por esse caminho, os sobreviventes atravessam o restante da América Central, alcançam o México e chegam à fronteira do Texas, por onde entram clandestinamente nos Estados Unidos. Certamente, conclui Camilo, a esmagadora maioria de cubanos tenta escapar pelo Estreito da Flórida porque, comparada a outras rotas, aquela é a menos perigosa e a mais rápida de todas. Camilo iria lembrar-se daquela conversa, ao ouvir falar de novo no Tapón de Darién.

Enquanto escuta, seu coração sofre. Algo lhe diz que não teria Padrinho por muito tempo, que ele não lhe ensinaria como fazer “mojitos” na discoteca, o ofício de barman nem a ser receptor de beisebol. Mas a vida corria ligeira, não deixava brecha para a melancolia. Depois do passeio pela praia ensandecida, voltam à casa do avô. Padrinho o chama a um quarto e lhe mostra uma caixa de madeira fechada com cadeado.

- É para você. Abra esta caixa quando for maior e tiver saudade de mim. Guarde-a com cuidado. Não mostre a ninguém. Um dia, se a polícia vier, queime tudo.

Uns dez dias depois, a família foi surpreendida com a notícia: Padrinho também embarcara para os Estados Unidos, como milhares de compatriotas faziam: numa balsa improvisada. Apenas a esposa sabia. A mulher explicou que, apesar de a viagem estar liberada por Fidel, o medo era tanto que Andrés preferira guardar o segredo sobre seus planos. Com ele foram uns vinte homens. Assim que chegasse à Flórida, daria notícias.

Passados quinze dias, nada. Tampouco havia se comunicado com os primos em Miami, como combinara. Eram muitos os que morriam na travessia, as águas do Estreito e os tubarões não perdiam oportunidades. A esposa, manteve contato ainda por muitos meses com os parentes e conhecidos na Flórida, sem qualquer resultado. Várias famílias dos que teriam viajado com ele diziam o mesmo. A esposa chorou todas as lágrimas possíveis, até que se conformou. Pelo menos não tinham filhos.

O coração dos adolescentes tem pouco tempo para sofrer pela mesma desventura. Logo Camilo se acostumou com a ideia da perda de Padrinho e concentrou-se na própria vida. Talvez fosse comportamento defensivo, sequer comentava o assunto ou perguntava por ele. Além de estudar, ajudava na chácara do pai e, quando podia, se reunia com amigos na praia, dançava, andava a cavalo. Aos quinze anos se apaixonou por uma vizinha da chácara ao lado, mas logo a esqueceu por outra e outra mais. Volta e meia, na casa do avô, lembrava-se de Padrinho e corria a abrir a caixa de madeira. Às vezes lia, às vezes apenas remexia os manuscritos, outras vezes apenas pensava nele, tinha saudade, às vezes abria a caixa por pura inquietação, às vezes, escondido, chorava.

No 28 de outubro, quando completou 18 anos, prestou atenção pela primeira vez às referências à morte misteriosa de Camilo Cienfuegos. Lembrou-se do que dizia a história oficial - um acidente aéreo - e cotejava a informação com os murmúrios de que ele tinha sido executado pelos Castro. Era evidente que discordava dos rumos da Revolução, que caminhava para o totalitarismo comunista. Com o tempo, entendeu que se chamava Camilo em homenagem a Cienfuegos, por sugestão de seu padrinho Andrés. Os manuscritos guardados na caixa tinham indicação de livros e documentários que já podia acessar, apesar da lentidão e do controle estatal da internet cubana. No princípio, as informações e recortes contidos nos cadernos o confundiam muitíssimo, pois se chocavam com tudo o que sabia. Era uma desconstrução monstruosa, perigosa e contínua de tudo o que havia aprendido ao longo de sua curta vida. Uma de suas perguntas era o motivo de tanta gente fugir de Cuba, ora com a permissão de Castro, como em 1980 e 1994, ora em segredo e constantemente, como se sabia agora, depois do advento do celular e das mídias sociais. Por quê?

Nesse sentido, o episódio dos “marielitos” era um de seus temas preferidos. Tudo começou em 1° de abril de 1980. Um grupo de cubanos bateu um carro contra o portão da embaixada peruana e pediu asilo. Fidel exigiu que os invasores fossem entregues, mas o governo peruano não permitiu. As imunidades diplomáticas não poderiam ser desrespeitadas. Fidel, então, matreiramente, retirou a proteção da Embaixada e logo cerca de 10 mil pessoas se asilaram ali e permaneceram esperando autorização do governo para emigrar para os Estados Unidos. Pressionado, Fidel liberou a saída do país para quem quisesse até 31 de outubro.

Nesse período, cento e vinte e cinco mil cubanos deixaram o país. Os exilados atravessaram os 140 km entre Mariel e Key West, o ponto final daquela viagem desesperada. Fidel usou a sua extraordinária inteligência e fez um movimento de xadrez: obrigado a liberar os asilados, aproveitou para abrir as portas a quem quisesse ir embora e incluiu no pacote uma porcentagem generosa de criminosos, dissidentes, loucos e doentes de toda classe. De uma tacada, oxigenou o sistema carcerário, o hospitalar e o político. Essa massa humana ficou conhecida como os “marielitos”.

LA CABAÑA

Outro assunto de seu interesse recente era o papel de Che Guevara quando comandante da prisão de La Cabaña. Como um dos líderes da Revolução, o Che virou um mito. Sua foto de boina rodou o mundo e se instalou no coração de jovens, impressa em milhões de T-shirts e seus “pensamientos” viraram livros. A frase “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”, atravessou gerações e, massificada, virou mantra de Moscou a Washington. Quem sempre disse odiar o capitalismo, no entanto, tornou-se uma marca capitalista, uma grife da contracultura, capaz de gerar dólares infinitamente mundo afora com a comercialização de milhares de produtos.

Camilo, no entanto, tinha a História mais de perto. A Fortaleza de San Carlos de La Cabaña (Forte de São Carlos), coloquialmente conhecida como La Cabaña, é a terceira maior fortaleza das Américas, construída pelos espanhóis para proteger Havana dos piratas ingleses do século XVIII. Está localizada na parte alta, no lado oriental da entrada do porto de Havana. Com o tempo, virou prisão política. Desde o triunfo da Revolução, os hóspedes principais passaram a ser os remanescentes da ditadura de Fulgêncio Batista, o ditador derrocado. Logo, no entanto, se misturaram ali os inúmeros dissidentes do novo regime, a maioria estudantes universitários que acreditaram ter ajudado a restabelecer a democracia no país e pensaram, ingenuamente, ter o direito de discordar dos rumos da Revolução.

Che Guevara foi Comandante de La Cabaña de 2 de janeiro a 12 de junho de 1959 e converteu-a em campo de extermínio, “sin perder la ternura”. Nos meses sob seu comando, cerca de duas centenas de pessoas foram fuziladas, entre as quais, alguns torturadores do regime de Batista. Fora esses, a maioria era apenas gente incômoda, alguns estudantes universitários idealistas e desafetos do icônico Comandante. Nesse período, o Che se converteu na fria e eficiente máquina de matar mencionada em um de seus “pensamientos”: “O ódio como fator de luta; o ódio intransigente ao inimigo, que impulsiona mais além das limitações do ser humano, e o converte em uma eficiente, violenta, seletiva e fria máquina de matar”. Era o mesmo homem que escreveu “o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor” e que, em carta a sua esposa Hilda Gade, confessa: “Aqui, na selva cubana, vivo e sedento de sangue”. O Che, em uniforme militar em quase todas as fotos, proclamava, paradoxalmente, que “a farda modela o corpo e atrofia a mente”. Camilo, enquanto lê os manuscritos de Padrinho se surpreende a cada página com as mudanças em suas referências e conceitos históricos. Heróis se tornam traidores, traidores da Pátria e da Revolução tornam-se heróis.

Camilo constata que a unidade de pensamento entre os heróis da Revolução jamais fora como mostrada pela propaganda oficial, os desentendimentos e intrigas palacianas existiram desde o começo. Em um dos textos de Padrinho, se afirmava que os irmãos Castro teriam enviado o Che para a África e a Bolívia na esperança de que o galã da Revolução morresse por lá em um dos nichos das guerrilhas que fomentasse com um punhado de homens. Erraram na África, mas acertaram na Bolívia, em outubro de 1967. Assim como Camilo Cienfuegos, o Che tinha carisma e podia ser uma ameaça futura aos Castro, muito embora não passasse de um aventureiro assumido. Guevara jogou Cuba na mão dos soviéticos permitindo a instalação de mísseis na Ilha, apontados contra os Estados Unidos. Foi quando o mundo poderia ter sido destruído pela guerra nuclear. Esse era o mesmo Che que se cansou dos soviéticos e passou a namorar a China de Mao Tse Tung, logo em seguida. Mas não deixava de ser um embaixador carismático do novo regime. Por muito tempo lhes serviu vivo; morto, serviu muito mais.

CUBA 2015

Camilo conhecia Cecília apenas de vista. Ele a via frequentemente rodando em sua moto pelas ruas de Puerto Esperanza, mas só começaram a relacionar-se de verdade quando ela voltou do Brasil em 2015. Ele trabalhava na “Disco de La Playa”, onde ela aparecia frequentemente para encontrar com seu grupo de amigos, sem nunca tomar bebida alcoólica. Puerto Esperanza era um lugar pequeno, a discoteca lugar de encontro de jovens, por isso sabia de sua estada recente na América do Sul. Enquanto servia as mesas, não tirava o olho da moça bonita e bem-humorada e escutava trechos de suas conversas com os amigos. Daí soube que ela só tinha voltado do Brasil porque terminara o seu período no programa “Mais Médicos”, se fosse por sua vontade permaneceria muito mais. Camilo achava-a atraente, e, além disso, muito diferente das outras moças que conhecia. Ia à discoteca às vezes, mas não bebia, apenas conversava com amigos e amigas e nunca dançava.

Mas um episódio pouco tempo depois de conhecê-la chamou realmente sua atenção. Foi quando soube que tinha impedido a polícia de entrar em sua casa para uma revista, sem mandado judicial. A notícia se espalhou rapidamente pela cidade e foi comentário nas mesas da discoteca e nas redes sociais por muitas semanas. Ela pediu com firmeza aos policiais que aguardassem na porta da casa, trouxe a Constituição, abriu a página correspondente e praticamente a esfregou na cara deles. Os homens entreolharam-se, afastaram-se um pouco, confabularam e se foram sem dizer mais nada.

A partir desse incidente, Camilo passou a ver Cecília com outros olhos, além da atração por suas formas femininas, sua alegria e a beleza do rosto. Já entrava na contabilidade amorosa a inteligência prática, sua agilidade de pensamento e seu espírito crítico e independente em relação ao regime cubano. Com certeza, dentro dos parâmetros da prudência necessária, pois havia espiões por todos os lados.

Outra de suas qualidades, na avaliação de Camilo, era o seu bom humor e ter os pés fincados na realidade. De volta do Brasil, passou a trabalhar no posto de saúde de seu bairro e ali havia a curandeira Caridad, “Cári” para os íntimos. Os pacientes, antes de procurarem Cecília, procuravam Cári. Depois de examinados pela curandeira, conforme o caso, Cári dizia:

- Isso não é coisa de outro mundo, portanto já podem procurar a doutora.

Cecília, ao invés de incomodar-se, se divertia com esse costume dos compatriotas. Dizia que Cári fazia a triagem entre dois mundos, algo que estava fora de seus conhecimentos, e ria gostosamente. Admitia que as religiões africanas permeavam todo o modo de vida dos cubanos, contrastando com o materialismo dialético, a filosofia do Estado. Entendia que havia, pelo menos, duas realidades convivendo paralelamente: o país comunista e as religiões, fossem africanas, testemunhas de Jeová e o catolicismo, entre as mais conhecidas. Cecília ganhou mais pontos com Camilo mostrando-se realista: reconhecia as crenças, não discriminava e nisso respeitava a Constituição e a realidade de seu povo.

Depois de passar pelo escrutínio de Camilo, Cecília não pôde mais esquivar-se, ele não lhe dava trégua. Compreendeu que ali estava uma mulher de valor e aceitou o desafio de morarem juntos e saírem do país para tentar outra vida, porque a situação em Cuba piorava a cada dia. Cecília, tomando-lhe confiança, contava muitas histórias da América do Sul. Sempre elogiava o Brasil e destacava a comida, parecidíssima à comida cubana do dia a dia:

- Arroz, feijão, verduras.... Nisso aí, pode incluir a carne de vaca, proibida aqui, mas lá tem à vontade. E o pão é completamente diferente. Por falar nisso, olha que interessante: mamãe quando esteve lá comigo a passeio, pediu pão francês com tomate no primeiro dia. E explicou ser uma espécie de vingança inconsciente contra esse pão horrível que o governo fornece diariamente de graça a cada residência - um para cada morador - e que já vem duro feito pedra.

Tinha, também, muitas histórias calcadas em sua experiência profissional na Bolívia e no Brasil. Contou que, no Brasil, apesar de um salário de 10 mil reais, ficava com menos de 3 mil. O resto caía diretamente na conta do governo cubano. Ou de algum "laranja", dizia maliciosamente, não sem antes verificar quem estava por perto: os informantes germinavam pela ilha inteira.

- Era o mesmo que nos alugar a um governo estrangeiro Estávamos na prateleira de exportação cubana, como tabaco, rum, níquel e açúcar. E, na prática, cada médico estava pagando seu ensino “gratuito” a posteriori.

Um dia, confessou-lhe que há muito não acreditava no que lhe ensinaram sobre a Revolução. Tampouco aceitava que o embargo era o que impedia o crescimento de Cuba, mas o desejo da família Castro e seus apaniguados de conservarem o poder a todo custo e evitarem que a corrupção no governo, enriquecimento ilícito e envolvimento em atividades ilegais, aparecessem ao público.

- Se os Estados Unidos retirarem o embargo, acaba-se a desculpa para manter a ditadura. Por isso, Raul não quis quando Obama propôs. Pediu uma indenização monstro, para inviabilizar a proposta.

Na evolução do relacionamento, chegaram ao momento que decidiram não permanecer em Cuba. Com o advento das mídias sociais e o contato com cubanos expatriados pelo mundo afora confirmavam-se cada vez mais as falências do país e, quanto mais sabiam, mais se desgostavam de tudo. E quanto mais a situação piorava, maior a vigilância e mais pessoas pareciam ser agentes da segurança do Estado. Entre os amigos e conhecidos, a ideia de emigrar era quase unânime, faltava uma oportunidade. A maioria pensava em Miami, onde quase todos já tinham um parente ou um amigo.

Camilo e Cecília, no entanto, focaram na América do Sul para aproveitar o conhecimento adquirido por ela. Tinham optado pela Argentina inicialmente, mas os amigos cubanos no Uruguai e no Paraguai, com quem se comunicavam e os orientavam, disseram que as coisas iam de mal a pior em Buenos Aires. Por outro lado, a alternativa Chile estava prejudicada, pois o presidente Piñera já não dava refúgio a estrangeiros. O Chile já transbordava de venezuelanos, haitianos e, também, de cubanos. Pensaram no Brasil, Cecília dominava o idioma, mas Camilo preferia um país de língua espanhola. O destino, decidiriam mais tarde.

Uns dias depois, abraçado a Cecília, consumaram o pacto, que era também uma espécie de casamento: furaram a ponta do dedo mindinho, misturaram o sangue e selaram seu projeto. Não havia mais dúvidas: Cuba já não era o lugar onde queriam viver e, eventualmente, criar filhos. Isto decidido, era preciso tomar medidas práticas. A primeira era entrar em contato com gente que podia tirá-los do país em segurança. Para isso, serviria o celular e o número dos cubanos de Pinar del Rio já residentes no Paraguai. Com eles conseguiram um número de celular em Georgetown, ligaram e as instruções da mulher que os atendeu foram secas:

- Não vamos conversar muito nem discutir detalhes por telefone. Peguem um voo para cá e avisem dia e hora da chegada. O resto encaminho aqui.

Passaram um dia ruminando a ideia, no outro dia começaram a executar o plano. Juntaram os dólares que tinham, compraram a passagem e avisaram o contato em Georgetown. A Guiana, tão conhecida de inúmeros cubanos e desconhecida totalmente para o casal, seria a porta de saída – ou de entrada - para a grande aventura fora de Cuba, principalmente para o principiante e atormentado Camilo.

FALTA SÓ UM MÊS

A um mês da partida, ainda de destino final incerto e passagem aérea da qual só utilizariam – esperavam - a ida, o coração de Camilo fraquejou. Iria deixar pai, mãe, dois filhos, muitos amigos e inumeráveis lembranças. A mente dava voltas, mas retornava sempre ao ponto doloroso: não sabia quando – e se - voltaria algum dia a Pinar del Río, a Puerto Esperanza e ao humilde El Gallito, onde tinha nascido. Quando poderia nadar de novo nas praias bravias que rodeiam sua ilha ou nos riachos transparentes perto de casa? Quando veria de novo seus seres queridos?

Os dias passavam e começou a duvidar de que era esse o caminho correto. Sentiu um nó na garganta e chorou várias vezes escondido, sem deixar que Cecília notasse. Para ela, mostrava-se forte, decidido. A saudade antecipada de toda uma vida, no único lugar que conhecera, apertava-lhe o coração. Para piorar, tinha um complexo de culpa político, sentia-se traindo Pátria e Revolução ao mesmo tempo,. Isso refletia a doutrinação que sofrera antes mesmo de aprender a andar. Só no olhar determinado do seu amor encontrava forças para seguir em frente. Dias mais tarde, já em território paraguaio, ela lhe confessaria que fraquejara várias vezes, mas buscou também no seu olhar companheiro a coragem para prosseguir. Da mesma maneira, deixaria a mãe, a avó, um punhado de amigos e recordações de toda uma vida em Puerto Esperanza. Dizia não ter nenhum sentimento de culpa como Camilo. E arrematava as conversas com essa frase:

- Estamos indo tarde. Já passou da hora.

Camilo, sempre mais sentimental, tinha vontade de juntar gente para uma despedida. A ideia era inviável por questões da segurança da família e de sua própria. Para consumo externo, estavam apenas indo a Georgetown, como centenas de cubanos faziam regularmente para adquirir roupas e revender em seu país. Apenas o pai e a sogra foram avisados do verdadeiro objetivo da viagem. No último momento, porém, contou, emocionado, a decisão da viagem ao filho mais novo. Não queria arriscar-se a que alguém soubesse e, por descuido ou mesmo maldade – os inimigos silenciosos são os piores - informasse à polícia que estavam desertando e estaria tudo acabado. Já não era como em 1980 e 1994, quando Fidel abrira as portas para quem quisesse ir embora. Havia espiões por todos os lados, Camilo bem o sabia e não queria passar o resto da vida encerrado numa cela em La Cabaña, apontado a todos como traidor da Pátria, do Partido, dos ideais revolucionários, um candidato natural ao Paredón, o mesmo Paredón que já tinha imolado tantos jovens desde 1959. Não só isso: a família também sofreria retaliações. Cecília e ele, depois da fuga, estariam, certamente, marcados para sempre. Pelo menos, enquanto durasse a Revolução e vivessem os Castro.

QUINZE DIAS ANTES DA VIAGEM

Ao aproximar-se o dia da viagem, o sono de Camilo tornou-se inquieto. Acordava várias vezes, assaltado por pesadelos. Na sequência das noites, vizinhos seus, humildes chacareiros de El Gallito, apareciam no sonho como agentes de segurança do Estado e o detinham à ponta de armas a caminho do aeroporto em Havana e o encarceravam em La Cabaña. Na prisão, tinha uma rápida entrevista com o Che, dizia seu nome, esse olhava fundo nos seus olhos e lhe dizia num mesmo tom de voz “condenado por deserção, traição à Pátria e ao Estado, fuzilem-no”, batia um martelo na mesa, e chamava ”o próximo”.

Os guardas subjugavam Camilo de novo e o encaminhavam à cela. Dos fossos de La Cabaña, escutava o troar de canhões e os estampidos dos fuzis. De repente, era levado ao Paredão e escutava, de olhos fechados, a contagem regressiva para receber o projétil que acabaria com tudo. Num desses pesadelos, quis imitar o estudante Vergílio Campanería Angel, fuzilado em 1961, e encarar o pelotão e seus algozes barbudos, mas não teve tempo: acordou chorando, com febre, nos braços de Cecília, que o consolava como a um bebê.

Na sua constelação de pesadelos, não faltou o desastre aéreo que, supostamente, teria matado Camilo Cienfuegos. Várias vezes, a sombra do mais popular dos barbudos da Sierra Maestra, com asas de anjo, de barba e cabelos brancos, vinha suplicar-lhe:

- Vinga-me, vinga-me, não foi acidente, foi Raul... foi Raul.

A história oficial dizia que Cienfuegos teria morrido num desastre aéreo por causa do mau tempo, junto com seu piloto, em 28 de outubro de 1959. No entanto, nem o corpo nem destroços da aeronave foram encontrados. Huber Matos, também comandante da Revolução, dissidente condenado a vinte anos de prisão por traição, afirma que Cienfuegos foi executado por Raul Castro a mando de Fidel, porque era o mais popular de todos os líderes da Sierra Maestra e questionava os rumos da Revolução. Ao final de tantas batalhas do inconsciente, Camilo acordava suado, febril, chamando por Cecília. Em outro pesadelo recorrente, era torturado para dizer onde tinha escondido a caixa de madeira com os textos de Padrinho.

As dúvidas e a culpa por fugir manifestavam-se em pesadelos constantes e em crises de consciência. Não estaria fazendo a coisa errada? Estaria traindo a Pátria, a Revolução, os sonhos legítimos de todo um povo? Não estaria sendo manipulado pelo Imperialismo Ianque, que tanto mal já tinha feito a Cuba? Padrinho seria realmente aquele ser bondoso que demonstrava ser ou um perigoso contrarrevolucionário disfarçado entre gente comum? Não deveria entregar a caixa e os textos à segurança do Estado? Cecília já não estaria comprometida com o individualismo, com o modo de vida capitalista? Não fora tio Andrés, o Padrinho, que havia escolhido seu nome em homenagem a Cienfuegos, pois Camilo nascera no dia de sua morte? Padrinho não queria simbolizar com aquilo que seu afilhado seria uma continuação de Cienfuegos, que não aceitava o desvio dos rumos da Revolução para o totalitarismo de Estado? Era isso?

A VIAGEM PARA A AMÉRICA DO SUL

Finalmente chega o dia da viagem. Seguem para Havana de ônibus. No aeroporto, nada acontece. Afinal, são apenas mais dois viajantes misturados aos sacoleiros cubanos que viajam regularmente a Georgetown para adquirir e depois revender roupas de origem chinesa. Outros vão para solicitar, pela via legal, um visto norte-americano, cada dia mais difícil. No entanto, os dois tremem como se suas mentes pudessem ser lidas pelos instrumentos de controle e, a qualquer momento, o sistema de som do aeroporto os chamasse para explicações. Entraram no avião. Era a primeira vez de Camilo. Ao acomodar-se no seu assento, respirou fundo. Pensou em dormir, mas não tinha esperança: a culpa de estar abandonando o país, os filhos e os pais não o deixava relaxar. Num breve cochilo, sonhou com Padrinho sorrindo e desejando boa viagem.

Agora, a sua aventura havia começado. Tinham, no entanto, apenas a passagem de ida e volta e um número de celular em Georgetown, com o qual já se haviam comunicado. Era torcer para que tudo desse certo, o pior – o pior mesmo – era ter de voltar com esperanças frustradas. Alguém os esperaria no aeroporto e os levaria até o contato onde pagariam a passagem para o Brasil e de onde seguiriam até o destino final, com todo um roteiro preparado.

Embora bem diferente do que viu na praia de Puerto Esperanza em 94 – o perigo era praticamente zero - estava também fugindo, abandonando a pátria para tentar conseguir um futuro diferente para si e para Cecília e, quem sabe, para os filhos que pudessem ter. O hub de clandestinos iniciava-se na Guiana e, para eles, terminaria no Paraguai ou Argentina. De agora em diante, tinham que encarar os fatos e estar preparados para tudo. Com a amorosa e firme Cecília a seu lado, as coisas ficavam mais fáceis.

A caminho do banheiro do avião, Camilo distingue Santiago, o amigo de Puerto Esperanza, já acomodado em sua poltrona, ao lado de pai e mãe. Será que também fugiam? Naquele instante, o gatilho da memória abriu diversas janelas felizes onde ele e Santiago eram personagens de momentos únicos. Nesse filme, voltam as recordações da infância feliz em El Gallito, em Puerto Esperanza, nenhuma preocupação e pequenas tarefas para cumprir e manter o bom relacionamento com os pais. Já adolescentes, querendo ganhar algum dinheiro, iam muitas vezes a Viñales, cidade turística, para aproveitar alguma oportunidade. E elas apareciam, os dois eram simpáticos e tinham iniciativa.

Pela mente de Camilo, passaram-se diversas cenas em sequência. Numa os dois meninos esperavam, num canto remoto da praia de Puerto Esperanza, a embarcação do pai de Santiago, pescador autorizado pelo governo, trazendo bonitos para a venda clandestina em restaurantes turísticos de Viñales, resultado de pequena propina aos fiscais de pesca do porto.

Numa outra janela da memória, misturada com tristeza, aparece o recém-nascido bezerro Montonero. O animal tinha sidoi designado pelos pais de Camilo e Santiago, tão logo se livrou da placenta, para ser criado clandestinamente pelos dois, com o objetivo de ser abatido assim que estivesse com idade e peso corretos. E seria comido no próximo aniversário de Camilo.

Nessa época, pela falta de eletricidade na zona rural, passavam os dias nas chácaras e as noites em Puerto Esperanza. Havia lugares ermos, onde Montonero podia pastar tranquilamente e onde era alimentado, alternadamente, pelos dois meninos. Com responsabilidade diurna, algumas facilidades noturnas foram aparecendo. Foi quando começaram a conhecer e se apaixonar por garotas a cada dia, como se fosse para sempre. E nada durava até a semana seguinte.

O tempo corria célere e os dias de Montonero começavam a ser contados. De certa feita, seu pai lhe disse:

- O bezerro já tem um ano, já podemos matá-lo. Sua mãe quer comer carne de rês assada.

Camilo tremeu.

- Ainda é cedo. Ele tem um ano, mas é muito magrelo. Não tem carne boa.

Na verdade, ele não queria era matar Montonero. O bicho já o reconhecia, olhava-o com olhos de amigo... E era. Conhecia-o de longe. Santiago também. Os dois haviam lhe dado nome, conversavam com ele, Montonero respondia, não era ilusão, era amor.

- Papai quer matá-lo. Quer comer a carne de vaca no meu aniversário.

- A carne de boi é muito gostosa, você já comeu?

- O ano passado, pela primeira vez.

- Você não tem medo de ser preso?

- Não, mas meu pai não pode ser preso. Vou no lugar dele, se precisar.

- E eu não quero que matem Montonero. Vou escondê-lo.

- Onde?

- Ali na serra.

- Eles vão achar.

- Eu entrego pra polícia. Mesmo que seja meu pai.

Mas Montonero foi morto e ninguém foi entregue à polícia. Aquela carne proibida silenciou qualquer remorso. E as duas famílias passaram um domingo comendo a carne deliciosa, afrontando Castro e a segurança do estado. Celebraram mais um 29 de outubro, aniversário de Camilo, mastigando aquela iguaria tão rara. Depois, as mulheres lavaram os pratos e os homens fizeram uma cova profunda, onde tripas e ossos foram enterrados. Depois, jogaram óleo diesel, puseram fogo e, a partir daí, nenhum bicho iria encontrar e desenterrar aquele indício criminal.

Num segundo ou, quem sabe, menos, Camilo foi e voltou ao passado um milhão de vezes. Voltou ao presente, quando uma aeromoça cheirando a hortelã, o conduziu delicadamente a seu assento. Já haviam dado ordem de apertar os cintos, Camilo não saberia dizer quanto tempo passou de pé fazendo contato visual com Santiago e afetivo com o passado.

Os rapazes se acenaram, sorriram e fizeram sinal de se ver depois. Quem sabe Santiago também teria feito a mesma viagem à terra das recordações e pensou de se encontrar mais tarde com Camilo em Georgetown, para conversar sobre isso e aquilo. De volta ao presente, ninguém perguntou o que o outro fazia nem para onde ia. Um silêncio tácito. No caminho de volta, evita o olhar dos vizinhos, receoso de qualquer pergunta indiscreta e desconcertante. Para todos os efeitos já tinha a resposta na ponta da língua:

- Também vim fazer compras.

Um ano depois, fica sabendo que Santiago, sem trocadilho, estava no Chile.

GUIANA

O voo faria escala em Aruba. Cecília, na decolagem, já se enroscou e dormiu agarradinha ao inquieto Camilo, ignorou Aruba solenemente e só acordou, muito bem-disposta, quando já aterrissavam em Georgetown. Para o companheiro, finalmente, era a chegada a outro mundo, pela primeira vez saía de Cuba e pisava solo estrangeiro. Já no salão de desembarque, um negro vestido de guaiabera e com uma faixa escrita Casa Adriannis os esperava, exatamente como combinado. Saudou-os com um sorriso de enormes dentes brancos e se apresentou, falando um espanhol antilhano:

- John, seu taxista, às ordens. Vou levá-los até a Casa Adriannis para comer alguma coisa e depois até uma van que os levará às compras.

Dito e feito. Uma hora depois, nada de compras, não era para isso que tinham viajado. O taxista não podia saber de tudo. Com a proprietária, começaram a acertar a viagem. Pagaram a metade, a outra metade seria paga em Boa Vista, assim que recebessem as passagens aéreas para Foz do Iguaçu. Ao perguntar o que queriam comer, Camilo olhou para Cecília e adivinhou o que ela ia pedir:

- Carne de rês, a carne bovina.

- Sabia, emendou Camilo.

A comida veio, comeram com prazer aquele bife enorme que Adriannis tinha encomendado, acompanhado de purê de batatas. Logo em seguida, depois de escovar os dentes e lavar o rosto, foram encaminhados à porta do hostel, onde já os aguardava um táxi. Os dois ansiavam por ganhar logo a estrada e partir para o Brasil. Em pouco tempo, já estavam num ponto de vans, onde mais viajantes os aguardavam. Eram eles e mais quatro cubanos, um peruano, o motorista surinamês e a esposa que iriam seguir até o Brasil.

Saíram antes de anoitecer para viajar os cerca de 600 quilômetros até Lethem, última cidade guianense antes da fronteira com o Brasil. Sabiam que iam ter de encarar a úmida e imprevisível selva amazônica. Mas o que se seguiu superou tudo, a internet não controla o tempo. Foram dois dias de chuvas implacáveis atrasando a viagem, a van quase engolida pelas estradas lamacentas – choveu a água toda do céu naqueles dois dias - os passageiros, pelo bem comum, tiveram que botar a mão na massa, literalmente, e ajudar o motorista a tirá-la do atoleiro várias vezes. Ninguém queria morrer de fome ou ser carregado pelos mosquitos sedentos de sangue humano. No caminho, passaram por duas barreiras de controle sem ser molestados.

Na terceira e última, porém, os agentes de imigração encontraram rasura no registro de entrada de Camilo. Cecília gelou, mas já vinham com a instrução de jamais darem propina na estrada. Alguém, realmente, tinha rasurado o registro de entrada. Cecília, mais uma vez, mostrou seu espírito prático e pediu ajuda ao motorista. Pelo celular, o surinamês se comunicou com alguém, conversou rapidamente em inglês e passou o telefone ao policial. Esse concordou várias vezes, yes, sir, yes sir, falou pouco, disse bye-bye e avisou que estavam liberados. O hub de clandestinos continuava operante.

De resto, foram dois dias e duas noites de percalços por causa da chuva impiedosa. Extenuados, com fome e sede, passaram por Lethem sem parar. Estavam loucos para cruzar a fronteira, entrar no Brasil e escapar das estradas lamacentas. Além do mais, as aparências não ajudavam: estavam cobertos de barro até as sobrancelhas.

Entre barreiras e medos, Cecília tremia ao pensar no momento de cruzar a fronteira Guiana-Brasil, tremor de mãos e inconsciente repetindo: “alguma coisa vai dar errado, alguma coisa vai dar errado”. Nada, porém, aconteceu. Na fronteira brasileira, o último bastião de seus temores, o policial federal cumprimentou os viajantes amistosamente e carimbou os passaportes, sem perguntas e delongas. Todos por ali entravam como refugiados. Depois era a vez da aduana: eles mesmos anteciparam-se e abriram a bagagem, uma fiscal da Receita Federal olhou meio desinteressada as suas mochilas e maletas baratas e mandou passar. Cecília suava frio, a persistente imagem do Estado cubano, onipresente, onipotente, ainda rondava sua alma e administrava suas reações e sentimentos.

BRASIL

Cruzada a fronteira, para Cecília a serenidade voltou. Lembrou-se do tempo que viveu no interior de São Paulo, do curso de apresentação em Belo Horizonte, de alguma maneira, sentia-se de novo em casa. Era outro ar, era outro chão, o mesmo idioma que aprendera a amar. O asfalto, raríssimo no lado guianense, deu-lhe logo a sensação de limpeza. Depois de 3 anos, estava de novo no Brasil. Entraram em Roraima, iam viajar 130 km por estrada asfaltada até Boa Vista, a capital daquele estado amazônico.

Terminados os controles de fronteira, o motorista surinamês apressou todo mundo. A van iria seguir imediatamente para Boa Vista. Em uma hora e meia, entraram na cidade, circularam um pouco e, de repente, a van parou em frente a uma construção compacta, parecida a uma fortaleza. Imediatamente, o portão eletrônico abriu-se, em segundos entraram e o portão se fechou atrás. Camilo pensou: isto aqui podia chamar-se o Repouso do Coiote. O patrão, gordo e confiante, era cubano, o sotaque não negava - os "eles" substituíam os "erres" no final das palavras - saudou-os efusivamente:

- Bienvenidos, vamos “entralll”...

Passou a chamar o cubano de Coiote em pensamento e se divertia com aquilo. Foram encaminhados a um quarto onde se banharam e fizeram um lanche. Depois, dirigiram-se ao salão, onde o Coiote já os esperava. Pediu silêncio, fez suspense, olhou demoradamente a todos e, finalmente, apontou para um mapa múndi de 2x2, onde se sinalizavam em verde todos os países onde tinha conexão. O suspense e o silêncio continuam, os sete viajantes aguardam, ele espera que os olhos de seus hóspedes viagem por aquela imensidão. Depois de um minuto, se manifesta orgulhosamente, fiado em seu poder sobre aqueles judeus-errantes:

- Escolham, o mundo é de vocês.

Em seguida, começou a rodar, para Camilo e Cecília, documentários atualizados sobre Argentina e Paraguai numa enorme tela de tevê. Em cima daquilo e do que já tinham ouvido, iriam decidir seus destinos. Os olhos de Camilo fugiram um pouco do vídeo e foram ao enorme mapa onde localizou imediatamente o Tapón de Darién, o lugar citado por Padrinho e o escritor de Puerto Esperanza. A lembrança trouxe-lhe imediatamente lágrimas nos olhos. Era a região entre a Colômbia e Panamá, uma das rotas mais perigosas de passagem de imigrantes ilegais que entram pela Guiana e pelo Equador com destino aos Estados Unidos. Por aí, além dos cubanos que não se arriscam pelo Estreito da Flórida, passam indianos, paquistaneses, iemenitas e outras diversas nacionalidades, aproveitando a facilidade de não precisarem de visto para o Equador. Por um instante pensou que Padrinho talvez tivesse optado por essa via e, quem sabe, estaria vivo em algum lugar da América do Norte. Era melhor pensar assim que imaginá-lo devorado pelos tubarões do Estreito da Flórida.

Mas era preciso voltar à realidade do documentário. Depois de terminados os vídeos, Cecília e Camilo se entreolharam. De todo aquele bolo, já tinham escolhido seu pedaço: Paraguai. Com as notícias confirmadas do momento negativo na Argentina, não havia outra escolha.

- Vamos para o Paraguai.

O Coiote assentiu, anotou e, imediatamente, dispensou-os com ar profissional e passou a cuidar dos outros que ainda não haviam decidido seu destino. Cecília e Camilo foram para um hostel e, na manhã seguinte, a secretária do Coiote entregou-lhes as passagem e deu as coordenadas:

- Eis aí o seu roteiro. Vocês viajam amanhã para Manaus, fazem conexão em São Paulo e descem em Foz do Iguaçu, onde devem chegar de manhãzinha. Quando chegarem, tomam um táxi até uma loja chamada Fábrica de Chocolates. Todo taxista do aeroporto sabe onde é. Ali esperam quem vai levar vocês a Ciudad del Este, no Paraguai, fronteira com o Brasil, o ponto final de nossa parceria. O taxista já tem suas fotos. Só esperar. Qualquer imprevisto, vocês ligam ou mandam mensagem no meu número. Desejo-lhes ótima viagem. Foi muito bom conhecê-los.

Nesse momento, passaram à secretária o dinheiro que faltava para fechar o trato, iniciado em Georgetown: já tinham na mão a passagem de ida para o Foz do Iguaçu. O hub de clandestinos era uma empresa ágil, responsável e moderna.

O roteiro estabelecido funcionou perfeitamente. Nenhum atraso. Em Foz do Iguaçu, chegaram na madrugada mais fria de suas vidas, desembarcaram sem problemas e logo estavam na loja de chocolates, com o estômago vazio, o maior dos cansaços do mundo, à espera do táxi que os levaria ao destino final. Um pão de queijo e um café quente reanimaram os dois viajantes, sugestão de Cecília, conhecedora dos hábitos brasileiros. Em seguida, ajeitaram as mochilas e cochilaram ali mesmo, até que um educado taxista os despertou cuidadosamente, talvez com pena de retirá-los bruscamente daquela almofada de sonhos em que descansavam.

CIUDAD DEL ESTE

Em Ciudad del Este, foram para o pequeno apartamento alugado para os primeiros dias, onde dormiram até o final da tarde. O casal de amigos cubanos de Pinar del Rio que os orientava há alguns meses passou no começo da noite para visitá-los e trouxe o jantar. Mais descansados, falaram da viagem, trocaram notícias sobre os eventos em Cuba, falaram de Pinar del Rio, Puerto Esperanza, de Havana e tomaram um café. Cecília e Camilo já estavam batizados.

Uma semana depois, Cecília encontrou trabalho como auxiliar de farmácia e Camilo num restaurante. Ninguém ficaria parado, se queria começar vida nova em outro país. O destino, no entanto, não lhes daria tempo de acostumar-se com o Paraguai. Logo, um cliente brasileiro do restaurante onde Camilo trabalhava, interessado por Cuba, lhe disse que em Foz do Iguaçu teriam mais oportunidades. O casal movimentou-se. Em menos de um ano, satisfazendo os desejos de Cecília, desde sempre favorável a viver no Brasil, mudaram-se para Foz do Iguaçu. Camilo logo encontrou emprego num hotel, começou a estudar português, tirou sua carteira de motorista e Cecília reservou tempo integral para o Revalida, pois pretende trabalhar de novo como médica no país. Mas isso é outra história que mal está começando e tem como personagem não convidada a Pandemia do ano de 2020, que parece querer adentrar 2021.

O cliente decepcionou-se com o que lhe contaram Camilo e Cecília sobre seu país. Ele é um daqueles milhares de brasileiros apaixonados pela Cuba mítica e seus heróis, a ansiada Pátria da Fraternidade, terra onde pensam jorrar leite e mel e já reina o Super-Homem de Nietzsche. Camilo e Cecília sabem que não é bem assim.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 30/12/2020
Reeditado em 01/03/2023
Código do texto: T7147938
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