O marujo e a sereia

Era uma noite de mar agitado, nervoso. Aquela noite em que não se devia sair para pescar. Porém, o jovem marujo não ouviu a experiência dos mais velhos, nem mesmo a canção que lhe cantavam: “Retira a jangada do mar/ Mãe d’água mandou avisar/ Que hoje não pode pescar/Que hoje tem festa no mar...”. Ele precisava prover o sustento da família, havia dias que nada pescava. Pela necessidade e principalmente pelo ímpeto da juventude, achou que poderia superar a força das águas.

Sendo assim, foi até seu pequeno barco de pesca, desatracou-o e em poucos instantes vencera as primeiras ondas bravias. Achou que seria fácil e deu pouca importância à agitação do mar, apesar da lua cheia e das estrelas que brilhavam intensamente. Singrando as águas com o seu pequeno “Valente do mar”, havia acabado de passar pelos arrecifes quando uma grande onda o surpreendeu e o lançou contra as pedras pontiagudas que por ali existiam. Era a barreira que ele não devia ter ultrapassado naquela noite.

Estava sozinho no barco e não teve tempo de reação. No choque contra as pedras, sua embarcação partiu-se em dois pedaços e ele foi tragado pelas vagas que fustigavam aquela região marinha. Enquanto seu corpo descia inerte, com o resto de consciência que lhe ficara, sentiu a alma desprender-se da carne e pode ver a si mesmo chegando ao fundo do oceano. Naquele momento, já em espírito, percebeu a condição em que estava e acabou desmaiando.

Quando voltou a si, não sabe precisar quanto tempo, estava cercado por um grupo de sereias. Ficou espantado porque para ele, aqueles seres eram apenas lenda, monstros que encantavam os marujos com seu canto e os arrastavam para o fundo do mar. Havia cerca de 7 sereias, todas entoando seus cantos com uma voz realmente encantadora. Ele não entendia o que cantavam, apenas percebia a musicalidade. Enquanto cantavam, elas faziam movimentos com os braços como que a retirar ou puxar alguma coisa dele.

Estava assustado demais para notar que estava sobre um daqueles abismos infindos que há nas profundezas marinhas. Olhou-as apavorado e quanto mais ele se apavorava e descia, elas aumentavam a intensidade do canto e dos movimentos. De repente, ele sentiu um breve puxão. Era como se alguém o sugasse para mais embaixo ainda. No entanto, num movimento tão rápido que ele não pôde perceber, uma das sereias mergulhou até ele e o trouxe para cima, colocando-o ao lado de uma pedra, a certa distância do abismo.

Aquela que o recolheu, parecia ser a líder do grupo, tinha longos cabelos negros e grandes olhos castanhos, que brilhavam naquele lugar com pouca luminosidade. Ele pensou em falar algo, perguntar, mas as sereias fizeram um círculo em torno dele e começaram a girar em sentido anti-horário, formando uma espécie de redemoinho ou cilindro. Apenas a líder do grupo permaneceu dentro, junto com ele, e começou a falar de forma áspera:

– Tu devias ter ouvido teus mais velhos e aquela intuição que estava gritando lá no fundo do teu ser. Agora estás aqui e quase foste sugado pelos senhores da escuridão que habitam estes abismos. Tua falta de fé fez com que foste ao encontro da própria morte. Por que não deste ouvido ao que te diziam?

– Eu pensei que sereias eram apenas lendas que contavam a fim de nos assustar. – respondeu ele, trêmulo. E continuou – Por que estou aqui? Por que vocês estão aqui?

– Não respondeste a minha pergunta. Seja rápido e objetivo, pois não temos tempo a perder. – respondeu a sereia, tão áspera quanto da primeira fala.

– Minha família precisava ser alimentada, sustentada. Eu estava em desespero.

– Para quem já esperara tanto tempo, um dia a mais não faria diferença. Viveste quase toda tua vida como um homem sem fé. Além do mais, achaste mesmo que podias ter desafiado o mar daquela maneira tão estúpida e inconsequente?

Ele ficou sem reação e ela continuou:

– Sim, nós existimos e raramente nos mostramos aos olhos humanos. Não somos monstros, como nos pintam as lendas e não devoramos os homens. Vocês se matam sozinhos porque se deixam seduzir pelos instintos da ambição desmedida, do ego desproporcional e, principalmente, pela luxúria quando nos veem. Algumas de nós até buscam alguns de vocês, mas não por nossa própria vontade. Nós cumprimos ordens e além do mais, vocês acabam nos chamando com suas ações que ferem às leis divinas.

O marujo estava cada vez mais estupefato. O cilindro em torno dele movimentava-se cada vez mais rápido. A sereia que estava com ele, parou de falar por um instante e fitou-o diretamente em seus olhos, como que a ler o que pensava. Depois prosseguiu:

– Somos seres encantados e em nossa dimensão estamos livres dos vícios e dos sentimentos humanos, sejam eles quais forem. Portanto, não somos anjos do mar, como dizem os românticos e muito menos somos demônios. Somos seres divinos, como vocês também são, muito embora não queiram enxergar isso. Temos também o nosso livre arbítrio, mas sabemos utilizá-lo. Estamos a serviço da Grande Mãe e atuamos quando quase todos os recursos para limpeza e conscientização já foram utilizados. Tu estavas prestes a ser levado e transformado em escravo do que há de mais perverso deste lado da vida.

– Mas por que vocês me salvaram? Depois de tudo o que me falou, não merecia eu tal castigo? – perguntou em prantos o marujo.

– Eu até concordo contigo, entretanto, obedecemos a ordens e tivemos de vir te resgatar. Parece que há algum propósito para ti. Não sei o que é e preciso te levar para que a Grande Mãe te explique. Está na hora. Vamos.

A um sinal sonoro dela, as demais sereias pararam os movimentos e como num passe de mágica ele se viu num grande salão que lembrava o formato de uma enorme concha e as sereias perfiladas ao seu lado. Cantavam agora de forma mais suave e doce. Em instantes, uma imensa luz azul apareceu, apenas a luz, sem a forma de nenhum ser, e uma voz fez-se ouvir, bem maternal, embora firme:

– Gratidão, minhas filhas, cumpriram bem a sua missão. Podem permanecer e ouvir o que será dito a este que a mim trouxeram. – disse isso para as sereias e, dirigindo-se ao marujo, continuou:

– Quanto a ti meu rapaz, tu és um dos meus filhos, um daqueles a quem recebi quando o Pai concebeu como espírito livre, portanto, terás a mim como tua “mãe de cabeça” em todas as tuas existências. Mas, voltando ao fato de estares aqui. Bem, tu já bem sabes que de certa forma provocaste o teu desencarne precoce. Deverias, pelas Leis Divinas, pagar o preço de tirares a própria vida, mesmo que de forma indireta. O Criador, no entanto, é também misericordioso nas leis que criou e, por isso, tenho uma missão para ti. Antes de explicar-te, deves saber que tens o livre arbítrio de aceitar ou não. Se aceitares, não será uma missão fácil, mas serás preparado para exercê-la com humildade, amor e caridade. Caso não aceites, serás levado de volta ao lugar em que as minhas sereias te encontraram. Lá, serás puxado para o abismo.

Ele apenas pensou que nada poderia ser pior que a energia densa e trevosa daquele abismo. No instante seguinte a voz falou:

– Muito bem, aceitaste a missão. Ótima escolha. Daqui a algumas décadas será criada uma nova religião, aberta a todos aqueles que queiram auxiliar no desenvolvimento da humanidade. Os espíritos que aceitarem a missão, deverão proporcionar, àqueles que os procurarem, a orientação, o esclarecimento, o conforto e a cura de seus males físicos, emocionais e espirituais conforme o merecimento de cada um. Tu serás apenas mais um trabalhador da Luz atuando sob minha proteção direta e sob a supervisão imediata de Janaína, a líder deste grupo de sereias. Ela e as suas companheiras estão encarregadas de te orientar em todos os sentidos a respeito de tua missão, todos os prós e todos os contras. Quando o aprendizado estiver concluído, dentro de pouco mais de um século, estarás pronto para atuar. Não te espante com o tempo, pois deste lado da vida a noção de tempo é bem diferente. Outros como tu serão também preparados e em breve vocês formarão uma grande falange de trabalhadores da luz na linha das águas. Enquanto seguires as determinações e orientações de Janaína, consequentemente as minhas também, tu estarás sob nossa guarda e proteção. Mas se te desviares, por menos que seja, estarás apenas sob a própria sorte. Vá em paz e nas horas em que te sentires desamparado, basta pensar em mim, a Grande Mãe, ou em Janaína. Ela sou eu e eu estou através dela.

Assim foi feito. Com Janaína e as sereias, o marujo aprendeu as forças do trono da geração da vida, a importância do equilíbrio razão e emoção (ser racional não é ser frio e ser emocional não significa ceder a tudo), aprendeu também que as ondas do mar são como os ciclos da vida: vêm trazendo coisas novas e vão embora levando o que não serve mais. Concluída esta etapa do aprendizado, que é eterno, o marujo ganhou seu símbolo: uma âncora apontada para baixo significando a afirmação diante dos propósitos da vida e uma seta ou arpão, cruzando a âncora, também apontando para baixo e significando a sua “arma” de caça, de pesca daqueles que atentam contra as leis divinas e que estão dentro de seu campo de atuação.

O problema, nem tanto assim, é que o marujo se encantou por Janaína. Ambos são espíritos em evolução, mas que se encontram em dimensões diferentes da vida e têm missões diferentes, apesar de coincidirem às vezes. Durante seu tempo de aprendizado ele compreendeu muito bem essas questões e focou apenas na missão que lhe foi dada e a qual ele cumpre muito bem. Quanto ao resto, quem sabe um dia, o Criador permita que ambos se encontrem na mesma dimensão. Até lá, os dois vão se complementando no que diz respeito ao que lhes foi determinado.

Desta forma nasceu a história do marinheiro Martim Pescador e hoje a falange dos marinheiros é uma das mais atuantes nos terreiros de Umbanda. Junto com os marujos, estão sempre as sereias, dando-lhes o amparo, ou anteparo, necessário para que possam exercer o seu trabalho com alegria e seriedade, acolhendo e recolhendo, ensinando e orientando, acalentando e puxando a orelha também. Marujos e Sereias, dois grupos de seres que, mesmo em dimensões diferentes, trabalham em conjunto pelo bem de quem precisa e merece. Gratidão!

Cícero – 22-01-21

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 22/01/2021
Reeditado em 23/01/2021
Código do texto: T7166183
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