João-de-barro

Vi que ele sobrevoava baixo assim que entrei em casa, mas não liguei muito, porque higienizar toda aquela feira me cansaria muito rápido. Entre as sacolas e a comida no fogo, um pelanquinho de joão-de-barro não deveria me atrapalhar.

Latidos caçadores e eu sabia que era por conta do pelanco. Um torpor incontrolável causava a perseguição rasante na sala; dois cachorros, um passarinho e eu, que gritava com a voz inválida. Não queria ninguém machucado.

O Dom não se atreveria, pois ainda infantil, confunde as pequenas asas com qualquer brinquedo; mas o Chico, vê tudo diferente. Vê com defesa, desconfiança. Em questão de segundos, pulou na altura do pelanco, que se deparou com a parede e não teve opções. Na boca do Chico, o pelanco se debatia e me deixava quase imobilizada, a passos mínimos. .

Pequenas lapadas de pano de prato espanavam as mordidas, na esperança de que o passarinho resistisse àqueles dentes. Arremessei também a sandália, mas era na boca que estava o furdunço e lá, só havia perdas.

O pano assustou o olhar satisfeito do Chico e foi quando a língua desistiu, largando o filhote no sofá. A respiração espremida, um líquen sobre as penas daquele peito tão miúdo. Eu não podia mais salvá-lo.

De novo o aperto na garganta. Ele já havia partido e o corpinho ainda quente se espalhava no assento.

Demorei por dentro vendo os olhinhos indo embora. Eram duas presenças na sala: a força da natureza, dona dos instintos latentes e a minha impotência de modo pasmo. Inerte, mantenho o passarinho sereno na minha mão, como se eu soubesse o que fazer com ele.

Agora, o peito sangrado é o meu.

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 05/02/2021
Reeditado em 05/02/2021
Código do texto: T7177382
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