Romance hebdomadário

É sexta-feira, acabou por chegar o fim desta semana, finalmente. Chegou um tanto perverso, aquiescido com um copo de cerveja ao lado de minha escrivaninha, na qual escrevo tais rabiscos, enquanto ouço Belchior ao fundo: “vida, pisa devagar/meu coração, cuidado, é frágil”. E sim, faz sentindo, é mesmo frágil.

Semanalmente, reparo o renovar de uma solitude a ser posta num papel, tento por para fora alguma composição poética oriunda de tal afeto abstrato, algumas dessas em vão, outras um tanto bem sucedidas.

Sou tomada por arrepios, calafrios, nó na garganta e goela seca, sensação esta, a perdurar por dias de feira e pelos demais chamados finais, não diria de semana, diria de saudade, daqueles em que eu precisaria falar sobre nós dois, melhor dizendo, estar entre nós dois.

Afinal de contas, às 18h, pós-expediente, ansiaria começar a contar-te do meu dia, juntamente, a saber, do teu. Contar-te sobre a nostálgica e incrédula sensação que me veio num dia desses da semana, da possibilidade de ter que deixar meu recinto, este, tão afetivo, carregado de memórias tão presentes, dos tempos em que eu brincava de boneca e costurava suas roupas a mão, conforme minha avó ensinou-me, onde vivi as indecisões e confusões mentais, de uma adolescente que apenas queria ser escritora e violonista.

Daria por troca, qualquer verso inacabado meu, pelo imenso almejo de papear junto a ti, numa noite fresca. Ouvir talvez uns “LP’s” antigos que ainda possuo como herança de família, contar histórias cômicas e trágicas familiares, onde sempre haverá de ter um parente com pouco juízo ou noção. Discutir sobre os livros e filmes da segunda guerra, ou coisas banais, e fazer piadas de como fomos obrigados a assistir às missas dos domingos e pedir a benção ao Padre, na infância. Você me contaria sobre algumas audiências tediosas, e eu, de logo, aproveitaria a deixa, para criticar alguma proferida sentença omissa e obscura, do meu desagrado, fazendo-nos sorrir com tais peculiaridades deste tão nosso cotidiano jurídico. Falaríamos sobre os meus prolixos e complexos escritos poéticos, do meu exagerado senso crítico e de sua barba um tanto exacerbada, que de tão peculiar, acabou por combinar com seus novos óculos, incrivelmente.

Seria de nosso gosto, abrir um velho e tinto português, envelhecido em carvalho francês, este, coincidentemente de nossa preferência, pelo amadeirado, forte e encorpado das uvas, com perfeitos taninos. E assim, como um casal romântico e moderno, sentar-nos lado a lado naquele deque de frente para o mar, sentindo o aroma do vinho junto à brisa salgada. De certo, você ajeitaria os meus cabelos assanhados pelo vento.

Discorrer sobre nós dois, entre nós, sós, só nossos, quiçá nus, em taças de mesmos corpos, juntos, por entrever algumas ondas de Yemanjá, enquanto você fumasse o seu cachimbo com aroma de chocolate belga, e como de costume, ter-nos-emos falado sobre os encantos que tens pelos orixás, no intervalo entre um gole de um tinto e outro, seria então, o enredo principal de uma sexta-feira qualquer de nosso desejo.

Eu poderia parafrasear qualquer que seja a canção ou qualquer trecho de um poema, por mesóclises ou próclises, e, talvez, as palavras me fossem escassas a nos definir, a definir o meu sentir e a falta deste, por vezes. Ainda que, este conto romântico e hebdomadário sucumbisse às exaustivas sextas-feiras em que desejaríamos nos ter aos finais de semana - aos sábados de luzes, de karaokê, por entre vinhos e corpos, e aos domingos, onde a saudade mais me emputece querendo apetecer-te, neste indefinido afeto quimérico, deste intangível desejo, nada há de suprir este lamentar, tampouco encontro algum verbo que conjugue este sentir. Meu bem, o que será de nós, afinal? Quisera eu ter a resposta a conjugar. Mas, quem sabe, tenhas tu.

Marinara Sena

05/02/2021

Marinara Sena
Enviado por Marinara Sena em 05/02/2021
Reeditado em 07/02/2021
Código do texto: T7177482
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