De uma hora pra outra

De uma hora para a outra.

Para a minha querida amiga, Deise Pinheiro.

Não era nenhuma surpresa que eu estivesse ali, novamente. Encarando minha cerveja e pensando em coisas fora do alcance de qualquer solução. Não era surpresa pra ninguém. Tanto que o garçom já me servia com a resignação de um médico que trata um paciente em estágio terminal. Mas era melhor estar ali do que em casa, encarando o vazio do meu quarto. Nunca fui de me lamentar pela minha solidão. Não seria naquele momento que eu iria começar.

Tomei um gole da cerveja e corri meus olhos pelo bar. Era o mesmo de sempre. Por algum motivo me senti enjoado pela sensação de familiaridade. Esvaziei o copo e pedi a conta. Paguei ao garçom e fui andando pro lado de fora. Quando pisei na calçada, ela estava lá. Com um cigarro na ponta dos dedos. Atravessou a rua sem olhar para os lados e desviou dos carros parados. Encostou-se no muro do outro lado e fumou seu cigarro calada. Fiquei olhando, sem pensar na inconveniência do meu olhar fixo. Eu não a conhecia. Mas por algum motivo meu olhar foi sugado em sua direção.

Ela jogou a bituca de cigarro no chão e cruzou os braços. Como se estivesse contrariada com alguma coisa. Afastei meu olhar e atravessei a rua pra seguir o meu caminho. Mesmo que eu não soubesse pra onde ir. Quando passei perto dela, ouvi pela primeira vez a sua voz.

- Oi. Boa noite. – Ela disse. Com a voz um tanto rouca.

Parei sem saber se era comigo que ela estava falando e me virei em sua direção.

- Boa noite.

- Moço. Desculpa perguntar. O senhor tem crédito no celular?

- Senhor? O senhor está no céu. Não sou tão velho assim. – Falei quase automaticamente.

Ela quase sorriu.

- Certo. Desculpa.

- Tenho sim. - Tirei o celular ofereci pra ela.

- É rapidinho. Só preciso fazer uma ligação. O meu celular descarregou.

- Tudo bem.

Ela pegou o celular, digitou um número e levou o aparelho ao ouvido.

- Alô! Onde você está? – Ela perguntou sem disfarçar a irritação.

Não consegui ouvir a resposta de quem quer que estivesse do outro lado e ela continuou.

- Sou eu, Daisy. Não se faça de idiota. Estou esperando já tem meia hora.

Consegui enfim, entender o motivo da sua contrariedade. E me perguntei que tipo de pessoa deixaria uma mulher como aquela esperando. Pela raiva, parecia ser alguém que ela julgava importante.

- Então vá se fuder, seu arrombado. E me faça um favor. Não me procure mais.

Ela desligou o celular e estendeu a mão pra me devolver o aparelho.

- Parece que eu tenho a habilidade de sempre me envolver com o tipo mais filho da puta de homem que existe. – Ela falou, com uma voz triste e amarga de quem tinha o choro embargado.

- Sei que não nos conhecemos. Mas você quer falar a respeito?

- Não quero desperdiçar o seu tempo.

- Eu não tenho nada melhor pra fazer. Te ouvir xingar alguém pelo telefone foi o ponto alto da minha noite

Dessa vez ela riu, e levou as mãos aos olhos pra enxugar as lágrimas.

- Tá. Quer tomar uma cerveja? Eu pago. – Falou.

- Eu aceito.

- Meu nome é Daisy. E o seu?

- Rômulo.

- Então, Rômulo. Onde você quer ir?

- Bem. Eu acabei de fechar uma conta no bar do outro lado da rua. Mas não acho que seja nada demais voltarmos pra lá.

- Tá.

Atravessamos a rua e entrei com ela no bar.

Silva, o Garçom, me olhou com um certo estranhamento. Dez minutos atrás, eu tinha saído do bar, solitário e macambúzio. E agora voltava com uma mulher do meu lado, que aparentemente tinha acabado de chorar.

Me sentei na mesma mesa de antes e fiz um sinal pra o Silva. Ele me conhecia muito bem. Sabia exatamente qual era a cerveja da minha preferência. Trouxe uma garrafa e dois copos e sorriu.

- Obrigado, vossa reverendíssima. – Falei quando ele encheu o meu copo.

- Não por isso, meu capitão.

- Já te disse Silva. Me arruma outra patente. Não quero ter nada em comum com o presidente.

Ele riu.

- Em 2022 ele “sarta” fora.

- Vai nessa. Com essa tropa de gado que ele arrumou, tô desconfiado que vamos ter que aguentar por uns anos mais.

- Vira a boca pra lá, tenho fé que as coisas mudam.

Ele virou a garrafa pra encher o copo de Daisy, e ficou olhando pra nós dois, com um sorriso nos lábios.

- Essa aqui é Daisy, Silva. Uma amiga. – Falei.

- Ah Sim. É um prazer, minha senhora. – Ele disse.

- A senhora está no céu. – Daisy falou.

- Aprendeu contigo, decerto. – Ele falou me olhando.

- Sou uma péssima influência, você sabe.

- Você é um bom rapaz. – Ele disse finalmente.

Deixou a garrafa na mesa e foi se afastando em direção ao balcão.

- E então. Sou todo ouvidos, se você quiser falar. – Falei depois de tomar um gole.

Daisy se ajeitou na cadeira, respirou fundo e começou a falar.

- Eu estava falando com um cara que estava ficando. Ficamos algumas vezes nas últimas semanas. Mas ele vinha esfriando de uns dias pra cá. Acho que logo depois que percebeu que eu estava envolvida. Foi ficando cada vez mais difícil vê-lo. Ele sempre tinha algo a fazer... mas ninguém é tão atarefado assim, né? Hoje íamos nos ver aqui. Mas ele aparentemente desistiu e inventou uma desculpa qualquer.

- Eu entendo. Sinto muito.

- O que me irritou foi que no começo ele era extremamente carinhoso e atencioso. Conversávamos por horas todos os dias. Mas hoje ele parece outra pessoa.

- Tem gente que muda de acordo com a conveniência.

- Sabe aquela coisa que dizem? Ninguém vai lhe tratar tão bem quanto alguém que quer algo de você.

- Já ouvi algo parecido.

- É. As minhas amigas dizem: Ninguém vai lhe tratar tão bem quanto um homem que quer lhe comer pela primeira vez. É muito tentador replicar isso, mas eu sou realista o suficiente pra não reduzir a coisa a só um dos sexos. Mulheres podem ser tão filhas da puta quanto. Afinal, falta de caráter é unissex.

- Então você acha que ele se desinteressou depois do sexo? Que esse era o único objetivo dele?

- Não sei dizer. Mas eu acho que ele gostaria de ter algo casual. Sem emoções, só carne e comodidade. Mas eu não sou bem assim. Nunca é tão simples comigo, quando se trata de relacionamentos.

- Nada é muito simples comigo também. Mas consigo levar bem as coisas de forma casual, pelo menos até eu estar envolvido.

- E com que frequência você se envolve?

- Antigamente eu me envolvia bastante. Sempre foi muito fácil pra mim. Muito natural. Mas ultimamente. A frequência é quase zero. Inclusive falei pra um amigo meu hoje... Não lembro da última vez que transei apaixonado.

- E o que mudou pra isso acontecer?

- Eu mudei... O mundo mudou. Decepções se acumularam...

- Entendo. Entendo. – Ela disse... quase sussurrando. Depois de tomar um gole da sua cerveja.

- Você estava realmente apaixonada por ele? – Perguntei depois de alguns segundos de silêncio.

-Não sei dizer ao certo. Talvez eu estivesse começando a gostar da ideia de poder me apaixonar novamente. E eu sou uma pessoa intensa. Não vou mentir pra você. Talvez isso que o tenha assustado.

- Nem todo mundo está pronto pra lidar com intensidade. Ainda mais hoje em dia. As pessoas querem o fácil e o fluido. O simples... o que não precisa de cuidado.

- É. É exatamente por isso que eu não me encaixo bem entre as pessoas. Nem faço muita questão.

- Eu desisti disso já tem um tempo.

- Sabe... as vezes eu me sinto como uma bailarina com os pés quebrados. Tentando dançar e fingir que a dor não existe. Mas ela está lá. Sempre.

- E de onde vem a sua dor?

- Você acreditaria em mim se eu dissesse que não sei bem explicar de onde ela vem?

- Não tenho motivos pra não acreditar em você. Acredito porque sinto exatamente a mesma coisa.

- Minha psicóloga acha que eu tenho uma tendência à melancolia.

- Só idiotas vivem felizes o tempo todo. Qualquer um que veja o mundo pelo que ele é, se torna incapaz de viver sorrindo. – Falei como se tivesse desabafando algo.

Daisy ficou calada me olhando sem dizer nada por quase um minuto. A ponto de eu pensar que tinha falado algo que podia tê-la magoado. Quando eu estava a ponto de me desculpar ela falou quase num sussurro.

- Parece que você foi atropelado algumas vezes pela vida.

- Você não faz ideia.

Daisy me olhou nos olhos, como se tentasse perceber alguma coisa dentro de mim, mas não disse nada ao final de um silêncio de quase um minuto. Então ela respirou fundo, pegou a garrafa e encheu os nossos copos. Bebeu o conteúdo do dela quase de uma vez e se levantou.

- Preciso ir no banheiro. – Falou.

- Fica ali atrás. – Falei apontando.

Ela sorriu e foi caminhando na direção.

Nesse momento o meu celular tocou e eu vi que era uma mensagem enviada por um número desconhecido. Abri a mensagem sem pensar e percebi que tinha sido enviada pelo número que Daisy tinha ligado. A mensagem dizia apenas.

“Me desculpa. Te ligo mais tarde”

Deixei o celular em cima da mesa e tomei mais um gole da minha bebida.

Daisy voltou parecendo estar com um humor mais leve.

- O seu boy mandou uma mensagem. – Falei, mostrando o celular a ela.

- Eu quero que ele se exploda, meu bem. Pode apagar.

- Não vai ler?

- Eu sou uma mulher de uma palavra apenas.

- Ok.

Apaguei a mensagem e bloqueei o número.

- Preciso ir embora agora – Ela falou, esvaziando o seu copo de uma vez só.

- Tudo bem. – Respondi. – Foi muito bom conversar contigo.

- Também achei. Obrigado por ter me ouvido.

Ela deixou dez reais em cima da mesa, se levantou e foi andando na direção da saída.

Peguei a nota e guardei na carteira. Depois fiquei olhando pra o meu celular. Não havia nenhuma mensagem pra mim. Guardei o celular novamente no bolso e quando levantei a cabeça, dei de cara com Daisy bem na minha frente.

- Você tem algo pra fazer hoje de noite?

- Não. – Respondi.

- Quer vir comigo?

- Pra onde?

- Pra minha casa. Tem umas cervejas na minha geladeira, e eu odeio beber sozinha.

Fiquei olhando pra ela processando o que ela havia me dito.

- E aí? – Ela insistiu.

- Claro. Claro... – Falei quase engasgado.

- Então vamos. Você pode pedir o Uber do seu celular? Acho que está meio tarde pra irmos de ônibus.

Concordei com a cabeça e me levantei. Fui andando até o balcão e deixei a nota que ela havia me dado, bem na frente do Silva.

- Fica com o troco, Vossa Eminência.

- Obrigado, meu consagrado.

- Pô agora eu gostei, Silva.

Ele riu e voltou a se concentrar na televisão onde passava os melhores momentos de um jogo de futebol. Aparentemente o time dele havia ganhado mais uma partida.

Daisy me pegou pela mão e me levou para fora do bar. Estávamos no auge do verão e o ar estava carregado de umidade. Daisy sorria, e eu me sentia bem, apesar do calor.

Impressionante como certas coisas podem mudar,

de uma hora pra outra.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 09/02/2021
Código do texto: T7180389
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