VITÓRIA

-- Cadê a droga das chaves, Vitória?

-- Bem aqui, Jorge -- olhava-o com medo --, em cima da geladeira, toma. -- Sentiu um frio no estômago quando o homem bateu a porta do sobrado com estupidez, da associação instintiva com as pancadas que tomara na madrugada; madrugada sim madrugada não; mas aos poucos foi relaxando ao ritmo decrescente do molho de chaves na fechadura, ao dissabor de uma lágrima que impediu com um Deixa pra lá, Deus sabe o que faz, passando maquinal à preparação do café da manhã das crianças.

Como acontecia todos os dias, às 9 a menina desceu as escadas, uma das mãos efregando os olhos, a outra conduzindo o menino de 3 anos que sofria de baixa visão.

Na mesa, a menina, que todos chamavam de Pepê em comiseração porque a desgraça do pai bebum a tinha registrado como Petrúcia, continuava a cuidar do irmão que o bebum do pai, mesmo embriagado, registrara como Ygor, com ípsilon. Servia ao menino e o ajudava a molhar o pão-com-manteiga no leite-com-Toddy, cena que, somada à da descida da escada, já havia, à força do hábito, perdido a capacidade de emocionar a mãe, o que não acontecia com a cena seguinte, que a mulher observava em pé da porta da cozinha com gosto: a menina ligava a TV, ajeitava o irmão em frente ao aparelho, contava para ele os trechos de um desenho animado do Mickey Mouse (alguns desses desenhos animados antigos, para a sorte de Pepê e Ygor, tinham narrador). Essa menina é um doce, pensava Vitória da porta da cozinha, e tornava a seus afazeres.

Na hora do almoço, Vitória notou algo que lhe passara desapercebido durante o café, algo que lhe trouxe novamente a lembrança meio que recalcada da surra que levara do marido, mais uma sensação de terror e fim do mundo do que uma lembrança completa em seus detalhes -- decerto não uma lembrança visual, porque não lhe vinha imagem nenhuma na cabeça; talvez, quando muito e se prestasse atenção (jamais o fazia), um seguimento sonoro de gritos, palavrões, choro, objetos quebrados e barulhos surdos de punhos e pés contra carne macia (seu corpo), era o que ela sentia. Tratava-se das olheras sob os olhos da filha, que tinha certeza havia chorado durante boa parte da madrugada. Já o menino, que era mais moren -- a primeira surra de Vitória após a gravidez, ainda de quarentena, havia sido por conta disso, porque o menino poderia ser filho de outro --, o menino que era mais moreno não transparecia na pele os efeitos da dor, que decerto também sofria.

Após despachar as crianças para a escola, Vitória pôde descansar duas horinhas, sua sesta; às 3, contudo, precisou levantar, porque tinha que lavar roupa, passar umas camisas do Jorge e sem falta, Deus a livrasse, preparar a janta do traste. Lembrou-se do que Ana Lúcia havia dito outro dia, e que ela recusara dizendo impossível, argumentando que Jorge jamais haveria de bater nos filhos que lhe eram xodó, que só batia nela, isso sim, mas nas crianças não... porém em seu íntimo não pudera deixar de pensar -- o que talvez já fosse um consentimento à hipótese da amiga -- que o monstro preferia o menino, porque macho e porque cego, mas que nem por isso havia de ter coragem de relar a mão na menina, isso não...

Foi aí, enquanto preparava a janta, que aconteceu a desgraça: um rato escuro e molhado apareceu na cozinha. Vitória deu um grito tremendo, saltou pra cima de uma cadeira, chacoalhou as mãos, deu chilique. Porque tinha um nojo incrível de animal com pelo molhado, por isso não admitia cachorro e gato em casa, quando muito uma tartaruga e uns peixinhos. O pior era que o rato ficou parado a uns dois passos dela, o que ela só percebeu uns 5 minutos depois, quando parou de tremer e teve coragem de abrir os olhos e dar uma olhadela rápida por entre os dedos da mão que segurava a faca de cortar carne. Mal havia dado pra ver, mas ela deduziu que devia ter deixado cair um naco de carne no chão, o qual o atrevido do rato, corajoso mesmo, correra para apanhar e em vez de levar embora ficara ali comendo, que nojo, meu Deus, que nojo, comendo a carne!

O tempo passava no relógio de parede mas Vitória estava estática; às vezes lançava uma olhadela pro rato, não porque tivesse coragem -- pensava que talvez nem depois que o bicho tivesse partido teria coragem de descer e pisar naquele chão imundo (havia passado pano com desinfetante logo depois do almoço) --, mas olhava sempre que pensava que atrasava o jantar de Jorge com seu medo, e isso, atrasar a janta do outro, um pouco só no começo, porém cada vez mais com o passar do tempo, lhe dava mais medo do que o próprio rato, ali, nojento e molhado. Às 5 e meia, 60 minutos exatos depois de o rato ter aparecido, porque Jorge chegava pontualmente às 7, Vitória conseguiu reunir forças para imaginar que bastaria descer da cadeira e pisar firme no chão, dar uns gritos, que o bicho ia embora; mas depois pensou que aquele rato não, porque tinha sido corajoso ao ter se aproximado dela assim, em plena luz do dia, dela, um ser humano em movimento. Que agonia, pensava, Deus do céu, o que vai ser de mim se Jorge me chega e não encontra a janta quente, a mesa feita...

O naco de carne já tinha acabado a essa hora, e foi então, quando Vitória desanuviou a angústia, o medo, o terror, porque supôs que o rato, satisfeito, ia embora, foi aí que o verdadeiro terror, aquele de dar nó no estômago e fazer as tripas terem vontade de se aliviar, a assaltou: pois o rato, satisfeito, decerto tinha uma ninhada imunda para alimentar, porque assim que comeu o naco de carne, o filho da puta se colocou a tentar subir pra cima da pia, louco, enlouquecido, arranhando a madeira, escorregando nos azulejos, e o pior era que ia fazendo progressos, e se ele alcançasse a carne, o que ela faria de janta pro marido e pras crianças, por Deus do céu, o quê, e a cada pulo que o rato dava dava um grito Vitória, parecia combinado, e na hora exata em que o bicho se enroscou nas carnes todo molhado e nojento, Vitória deu um grito final, se mijou toda, deu um pulo e, às raias do nojo, do ódio, do medo, não viu o que fez, a vista escurecida como quando se desmaia, atacou o bicho com a faca...

O monstro esfaqueado jazia no chão. Havia acontecido assim: Vitória, fora de si, retalhara o rato com 15 golpes de ódio e terror. Ao chegar, Jorge encontrara Vitória na cozinha, sentada, transida de medo, esperando-o com um sanduíche de mussarela. Ele a xingou de vagabunda preguiçosa, acusou-a de ter dado toda a comida pras crianças, chutou-a nas canelas e nas coxas, como prefetia a dar-lhe socos, e então subiu as escadas dizendo que ia tirar satisfação com Petrúcia, porque filha de peixe peixinha é e o menino cego não havia de ter comido a comida comprada com o dinheiro dele. Nessa hora, sabendo que o marido bateria na filha, lembrando das palavras de Ana Lúcia, Vitória chamou Jorge de volta, volta aqui seu viado filho da puta, ela disse, e quando ele voltou pra lhe dar mais chutes, ela o esfaqueou 15 vezes na barriga, no peito e no rosto, porque não viu o que fez, a vista escurecida como quando se desmaia, e assim ficou a cena, o rato morto a facadas sobre a pia, Jorge morto a facadas no chão. Vitória sorria.