Tio Francisco e a espuma sem fim

Quem vê aquele senhor baixinho e pançudinho, sentado à porta de casa, jogando paciência no celular, não imagina quanto foi famoso – a imprensa e as redes sociais, principalmente de viés esquerdista, quase o beatificaram - e quanto sofreu nesta vida. Terá mais de noventa anos e está quase senil.

É tio Francisco, meu tio-avô, o mais pão-duro dos seres humanos, aposto com quem quiser. Os parentes mais velhos dizem que vivia de sanduíches, pão dormido, economizava almoços, trocava de cuecas uma vez por semana, no dia em que se banhava. O resto da roupa era cada quinze dias. Por isso, não era muito cheiroso, digamos, especialmente em dias de calor. Economizava até palavras escritas no computador, não reescrevia toda a sentença, apenas os caracteres errados. Perguntado por que motivo fazia isso, justificava-se dizendo que era para economizar o teclado. Além disso, andava a pé, nunca teve nem bicicleta.

- Faço tudo no dedão, se gabava.

Só pensava em economizar, porém, sem um objetivo claro, com explicações genéricas.

- Tem de guardar. Quem guarda tem.

Era economia porca, de centavos, de meio pão, de moedinhas, de coxinhas surripiadas de festas corporativas de aniversário e levadas no bolso do paletó.

Surpreendentemente, com o advento das redes sociais, tornou-se famoso, porém, de maneira negativa: pelo pão-durismo. Tio Francisco, então, teve um momento de glória, pois, imaginem, o Greenpeace o premiou por ser o cara mais econômico do mundo. E foi uma festança, nada menos que o Príncipe Charles o condecorou. Não sei se se lembram do boneco Pão Duro. É este aqui. Não veem nenhuma semelhança com tio Francisco? Pois ele foi o modelo.

Em outras palavras, ser pão duro, para o Greenpeace, era ser ambientalista. Essa era a "rationalia": quem consome, polui; quem não consome, conserva. Tio Francisco consumia o mínimo, talvez não houvesse no mundo quem consumisse menos, assim caiu nas graças da entidade conservacionista. Recebeu diplomas, prêmios em dinheiro, saiu na imprensa, gravou publicidade. No Youtube, fizeram um documentário com ele, onde até palavras foram intencionalmente economizadas. Para o contexto, foi o menor documentário de loas produzido no mundo, durava dois minutos e pouco.

Ao fim e ao cabo, Tio Francisco virou herói. Estava implícito que ele era o responsável por salvar baleias, ursos polares, guepardos, lobos-guará, onças, ararinhas azuis, botos cor-de-rosa, manatis, certas borboletas, minimos insetos e outros animais em risco de extinção. Tio Francisco pegava carona no pacote que abarcava o cuidado com a camada de ozônio, contra o aquecimento global e mais uma série de cuidados ambientalistas.

Depois da homenagem do Greenpeace, tio Francisco virou meu ídolo. E não foi por me dar presentes, porque nunca deu. Mas eu me sentia famoso por ser seu sobrinho neto. As pequenas deferências que nos fazia aumentavam seu valor. Uma delas, era jogar bete-altas com a gente. Bete-altas é um jogo adaptado do beisebol, jogado com pés e mãos no interior de Minas. Era o único esporte de Tio Francisco, pois não exigia equipamento. Senão, vejamos: a bola é de meia velha; o alvo é um cone feito de gravetos, mais ou menos como uma tenda indígena norte-americana: as pás, lugares onde a defesa pisa e descansa, são cacos de telha, pedaços de papelão ou tocos de madeira. Custo zero. Os jogadores são quatro, dois defensores e dois atacantes; a defesa usa os pés, o ataque, as mãos. Beisebol e futebol juntos. Quem quiser ver as regras, é só ir no Google.

Então. Depois do prêmio do Greenpeace, tio Francisco entusiasmou-se em projetar produtos ecológicos de grande duração. No princípio, foi paparicado. Tinha um resto de dinheiro dos prêmios, os políticos de esquerda se aproximaram dele. Mas a fama dos tempos modernos, tão rápida vem, tão rápida se vai. Logo perdeu os apoios, ao mesmo tempo que ninguém mais o distinguia da massa de celebridades sendo criada e consumida a cada dia, cada semana, cada mês. Junto à perda da fama, o dinheiro também se esvaiu, só era débito, crédito nada.

Tio Francisco não se entregou ao desânimo, mas esteve à beira de fazê-lo. Depois de muito penar, apareceu alguém que acreditou nele e mudou a sua vida. O encontro com essa pessoa aconteceu em circunstâncias inusitadas, prestem atenção. Era Domingo de Ramos, tio Francisco tinha ido a Minas mendigar uns trocados a seu irmão Ubaldo, como fazia sempre que estava no fundo do poço. Um empréstimo que os dois sabiam nunca seria quitado.

Enquanto negociavam, os dois irmãos assistiam à passagem da procissão que celebra a entrada de Jesus e o Burrico em Jerusalém. Sem alarde e sem religião, abelhas começam a tomar conta do lugar, atraídas pelo cheiro das folhagens. Estapeadas por um e outro fiel, até então concentrados em orações e cantorias, as abelhas se excitam e reagem. O ataque se generaliza, a balbúrdia se espalha até se tornar incontrolável. Aleijados caminham, cegos veem, surdos ouvem e jovens com transtorno de déficit de atenção se concentram, pela primeira vez, em apenas uma coisa: escapar da sanha das melíferas. Até entenderem o que se passa, várias centenas de pessoas são atingidas e levadas quase irreconhecíveis para o hospital público local. Obviamente, o ataque alado destrói a sacra passeata e cobre Jerusalém de picadas. Resultado: muitos fiéis vão parar na UTI do hospital local de caras irreconhecíveis.

Uma dessas vítimas era Achilles Cordato. Ateu convicto, quixote alto, magro, cabeludo e barbudo, tinha viajado de São Paulo a Minas para escrever artigo sobre essa manifestação popular do ponto de vista sociológico. A outra vítima que nos interessa era exatamente tio Francisco. Pois os dois extremos, um sovina e outro perdulário, abriram os olhos na enfermaria na manhã seguinte e viram um ao outro antes de qualquer coisa. Ainda meio grogues pelos medicamentos e mal podendo enxergar, estenderam as mãos, se deram bom-dia, se apresentaram e, sorridentes, começaram uma conversa animada que parecia não ter fim. Ocupavam camas vizinhas, tomaram soro e foram liberados duas horas depois.

Ao saber das ideias e experiências de tio Francisco, Cordato encantou-se com aquela figura pacata e imaginativa. Propôs impulsivamente uma sociedade: a partir daquele momento financiaria suas pesquisas de produtos de duração prolongada. Chamou logo um fotógrafo e registraram o encontro. O instantâneo mostra dois seres estranhíssimos: um barbudo alto e esquálido e um baixote gorducho, ambos de olhos inchados, apertando as mãos em sinal de negócio fechado.

Já na despedida, à porta do nosocômio, Cordato lhe disse que não era uma coincidência o encontro dos dois naquelas circunstâncias, haja vista que seu sonho era criar abelhas. Inclusive, a empresa já tinha nome registrado: Florimel. Portanto, o ataque inesperado das melíferas e o internamento na enfermaria em camas vizinhas não passava de uma conspiração do Destino para que os dois pudessem se conhecer e realizar os prodígios que o Multiverso esperava deles, bastava juntarem-se. Cordato despediu-se, reafirmando a parceria:

- Fique tranquilo, concentre-se, gaste seu tempo. Vou lhe pagar, primeiro, para pensar. Depois, para materializar seu pensamento.

Fosse como fosse, em um ano e meio, a parceria começou a dar resultados. O primeiro produto consumava um dos projetos de tio Francisco: a espuma de barbear infinita. Foi a glória e o sucesso financeiro deles por uns dois anos, mas também sua desgraça porque iam na contramão da História. Consumir é a lei máxima, a afinação de toda a sociedade, vigora sobre todos o conceito da obsolescência programada. As mercadorias têm um prazo para serem substituídas. Se a obsolescência vale para celulares, computadores e periféricos, geladeiras, micro-ondas, vibradores, baterias de carro e lâmpadas elétricas, por que não valeria para a espuma de barbear?

Não demorou muito e o ciúme do mercado começou a investigá-lo e encurralou o inventor. Seu pão-durismo, celebrado pelo Greenpeace, o acompanhava também à repartição pública e era agora seu inimigo. Um de seus deslizes era levar água mineral do trabalho para casa. Conseguiram uma filmagem que caracterizava crime de peculato. No filme, tio Francisco enche metódica e diariamente duas garrafas de água mineral de meio litro na repartição e sai discretamente com os recipientes numa mochila. O filme foi usado para obrigá-lo a contar a fórmula da espuma infinita. Ou contava ou perdia a aposentadoria. Já eram seus concorrentes em ação:

- Conta a fórmula da espuma de barbear?

- Ai, ai, ai...?! Argh, urgh...

- O que mais? Por que é infinita?

Tio Francisco estrebuchava com as fisgadas do tazer, comprado especialmente para a ocasião.

- Ai, ai, ai... argh, urgh...

- E o recipiente? Por que é feito de plástico e alumínio?

- Gluglgu...

Era a mangueira esguichada na sua boca. Sofreu como um comunista. Pau-de-arara, telefone sem fio, goteirada na cabeça y otras cositas, além da utilização de instrumentos modernos, como o tazer. Deve ter contado a fórmula, pois pararam de persegui-lo e não perdeu a aposentadoria. Seu financiador, Achilles Cordato, acompanhou seu infortúnio por alguns dias, porém desapareceu misteriosamente duas semanas depois e nunca mais foi visto no seu elegante escritório da Paulista.

Quando acabou sua prisão preventiva, tio Francisco voltou pra casa e não falou mais coisa com coisa. Nem mesmo perguntou por Cordato. Continuo gostando de meu tio, mas não posso demonstrar. Se me aproximo dele, entra em pânico e se esconde. Sou motorista de Uber, passo muitas vezes em frente à sua casa, porém vejo só de longe aquele caquinho que já mostrei no início, lá na cadeira de balanço, fazendo palavras cruzadas e jogando paciência no celular. A máfia da obsolescência programada conseguiu, por fim, retirar do mercado a espuma de barbear infinita.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 01/03/2021
Reeditado em 14/03/2021
Código do texto: T7195543
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