Último conto da vida passada

Acordei às seis da manhã. As persianas externas fechadas como em quase todos os 47 dias anteriores já me era familiar. Aquele era o tão esperado dia. Eu que havia chegado numa UTI aérea, com dois ou três médicos e um monte de enfermeiros, não esperava que seria necessário tanto tempo. Tantas coisas aconteceram no caminho. Primeiro era a falta do tubo aórtico, depois, seguidas infecções com febre alta e longos tratamentos com antibióticos pesadíssimos. Fora os companheiros de quarto que tornaram minha vida um inferno, chegando a necessidade de que eu mudasse de quarto. Na verdade, o último colega de quarto era um cara legal. Já tinha observado ele em outros dias. Toda manhã caminhava no andar debaixo, e como o percurso era curto, ao longo de uma hora, era possível vê-lo passando várias vezes. Eu me sentava no jardim do hospital para aproveitar o sol da manhã, e sempre nos víamos e nos cumprimentávamos. Apesar da fama do sol da cidade Maravilhosa ser sempre muito intenso, naquelas manhãs não pareciam tanto. O velho Neruda, inclusive, já tinha levantado a questão no seu Livro das Perguntas: Por que o sol é tão impiedoso com o caminhante no deserto? E por que o sol é tão simpático nos jardins de hospitais? Também me pergunto o mesmo, e apesar dos mosquitos da dengue e do cheiro de carniça constantes, os jacarandás centenários compensavam a paisagem.

Fui para banho em jejum, e eles passariam a partir das oito. Eu tinha que raspar todo e qualquer pelo que houvesse na parte frontal do meu corpo. Menos a barba, que me deixaram ficar não sei porquê. Foi um longo trabalho, usando uma gilete barata e me machucando várias vezes. Depois de 40 minutos, consegui terminar e me besuntei com clorexidrina, como recomendado na noite anterior. Vesti o pijama azul, já gasto pelo uso e que deve ter vivido muito mais histórias e histórias muito mais trágicas que a minha, e me deitei para assistir o jornal. A saúde na cidade estava um caos. Os hospitais geridos pela prefeitura estavam demitindo muita gente, e consequentemente, muita gente estava ficando desassistida. Tentei entrar em conversas com minha mãe mas nenhum assunto fluía. Ela estava muito mais apreensiva do que eu. Na noite anterior, enquanto caminhávamos pelos corredores do hospital, eu tinha pensado em deixar uma carta para ela. Ia dizer que todos os momentos e todas as dificuldades que passamos e superamos, era graças a ela. Que todas as qualidades que acumulei até aquele curto, mas intenso, período de vida era fruto de todos os ensinamentos e broncas que tinha recebido. Eu só tinha chegado onde cheguei por ela, e tinha medo de morrer na mesa de cirurgia sem dizer isso, e de abandoná-la nesse mundo tão cruel, onde aprendemos a nos virar e sobreviver.

Às oito e meia, dois padioleiros bateram à porta. Um deles tinha uma espécie de camisola e pediu que eu me trocasse. Quando me ajeitei na cadeira de rodas, um deles me calçou com sapatilhas descartáveis. O corredor cheirava muito mal, pois era o horário em que as enfermeiras começavam a trocar e limpar os doentes. As poucas vidraças mostravam um dia cinza do lado de fora, com uma chuva constante. Viramos à direita para pegar a rampa de acesso, minha mãe seguia ao lado, em silêncio. Eu buscava palavras para tentar dizer alguma coisa, ao mesmo tempo que tentava passar tranquilidade. Mas fizemos toda a subida sem falar nada. Aquelas rampas que subiam, e consequentemente, desciam, foram parte da minha rotina naqueles últimos dias. Exames, urgências, caminhadas lentas. Tudo passou por ali. As pequenas janelas de vidro que facilitavam a passagem da luz do sol durante o dia, passavam a impressão de tuneis que não levavam a lado nenhum.

Enquanto subia, para o que podia ser minha última passagem em vida por ali, lembrei de como tinha me acostumado a ver o Pão de Açúcar em todos os horários do dia. De como a ponte Rio-Niterói, mesmo sempre tão movimentada, parecia uma tira de concreto de onde eu a via. Pensei nos garotos que jogavam futsal todos os domingos à tarde numa quadra do Jardim Guanabara. Nos aviões que decolavam do Galeão. Lembrei de como a vida era irônica, e do quanto eu amava de verdade alguém agora, estando na margem de incerteza da vida. Meses antes eu tinha encontrado o amor da forma mais inesperada, e achava que podia suportar tudo para voltar para casa e encontrá-la novamente. Que todo o limbo daqueles dias ficaria no passado, caso eu voltasse e a tivesse do meu lado. Duas semanas antes ela tinha atravessado o país para me visitar, e nas longas conversas que tínhamos eu sempre dizia a ela que apesar de me sentir no momento mais obscuro da vida, eu me sentia muito feliz e pleno por tê-la ao meu lado.

O lado externo do centro cirúrgico destoava de toda a construção do hospital. Uma placa de bronze fixada em uma parede de granito indicava que tinha sido inaugurado a poucos anos, e a porta de blindex só abria internamente, ou por código de acesso por fora. Foi ali onde me despedi de minha mãe. Até queria chorar, mas o fato da minha aorta ascendente estar por um fio já me fizera engolir o choro em dias muito piores. Não havia palavras que eu pudesse dizer. Nós dois sabíamos de todos os riscos, inclusive o de não dar certo. E quando a porta se fechou, senti minha alma anestesiada, pois não havia mais volta. Me disseram para deitar numa maca que me aguardava, e que eu esperasse. Ouvi duas médicas espantadas, pois era comum esse tipo de cirurgia em pessoas de mais idade, e quando olhei melhor a minha volta, reparei que as pessoas da equipe médica também pareciam assustadas. Nesse momento fui levado para sala de cirurgia.

Já na mesa, pediram que eu me sentasse, e um dos cirurgiões ainda brincou comigo enquanto colava nas minhas costas eletrodos tão frios quanto a própria mesa, dizendo que seria uma pena se a cirurgia fosse nas costas, pois ele ficaria com pena de cortar minha tatuagem. Quando me deitei de novo, me lembrei dos filmes onde vi pessoas sendo operadas, e aquela luz extremamente clara de três luminárias que ficavam acima da cabeça dos médicos. Senti uma forte picada no pulso enquanto o acesso radial era fixado, e perdi a noção do tempo enquanto virei a cabeça para olhar. E ao voltar a olhar para cima, só tive tempo de ver a máscara se encaixando no meu rosto, enquanto alguém dizia: agora, apenas relaxe.

Márcio Filho
Enviado por Márcio Filho em 03/03/2021
Reeditado em 22/03/2023
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