Curral de Sangue

Todos os dias na hora do almoço ele ouvia essa mesma música, uma voz vadia que incomodava. Era bom quando o cheiro do galeto assado umedecia as entranhas e só por isso, valia a tortura. As duas tiazona olhavam ele de perto; uma com cara de dó, outra com cara de nojo. Ainda assim, ele sempre ficava na calçada esperando um pedaço de frango voar pra cima dele.

O galego nasceu na rua. A mãe pulguenta o pôs na vala e ele saiu de banda, serpenteando até desembocar aqui no Curral de Sangue. Caixote velho, marquise rachada, carinho é tapa no couro, chute nos olhos, ferida nas ancas. Comida aqui é isso: osso, langanho, pelanca, óleo queimado, resto de marmita dos cara da obra, ou das que se rouba por aí.

Nesse reino tem de tudo, e eu bem que vejo, assim como ele viu quando jogaram o lixo da casa das tiazona. Elas tinham um cheiro de estrago, de azedo, de sovaco, de bafo. Galego sempre murchava as orelhas quando elas passavam. Nessas horas, ninguém merecia ter faro.

Galego era parte do lugar. Sabia a hora do rapa, quem corria, quem se escondia, quem apanhava, sabia até quem era o dono da sirene: o polícia que o atropelou uma vez. O fardado tinha um esquema com o Ruivo. Faz parte, tudo era vizinhança.

À noite a chapa esfriava e o Galego palmeava o terreiro todo antes de dormir; ciscava a areia pra puxar a quentura no buraco, rodopiava, rodopiava, mas não ficava tonto. Polia as unhas na terra seca, esquentava os cascos e o focinho na poeira. Fuçava o lixo a essa hora, porque a concorrência era menor. Tava de olho no saco escuro da casa amarela desde o começo da noite.

A língua pingava, ele coçava as costelas, balançava a cabeça pra todo lado, abanava o rabo e sempre começava pelas sacolas boas de rasgar, dava pra ver o que tinha dentro. Eu achava engraçado esse jeito dele. Galego revirava tudo com cuidado pra não acordar os parça e também pra não perder pedaço de si em tampa de lata de sardinha ou caco de vidro.

Escavacou até encontrar o saco escuro. A tiazona havia jogado de um jeito que deu pra ver que era coisa mole. Talvez restos do assado.

Dizem que animal não tem alma, mas tem coisa no galego. Do contrário, não tinha perdido a fome com aquele cheiro de esgoto embrulhado pra viagem. Com o saco na boca, procurou uma vala por perto pra jogar córrego abaixo como a pulguenta da mãe fez um dia. Galego acelerou o passou e apertou a mordida ladrilho acima pra algum humano ver. Ciscou na casa da tiazona, mas ninguém apareceu. Abocanhou o saco novamente, e riscou as patas por quase um quarteirão. Foi em quase todas as casas. Ninguém pra ver aquilo.

O fato é que não se deve dar conversa de madrugada em Curral de Sangue. Casa pra quem é de casa. Rua pra quem é da rua. Tem os da vala também, como eu e o Galego. A vala é isso: azar, azar, lapada, azar, lapada, um segundo de sorte, um suspiro e quem sabe uma morte breve.

As tiazona dormindo e ainda dizem que animal não tem alma.. Se não tivesse, Galego nem estaria na calçada com a baba escorrendo de tanto lamber e limpar os braços, dedos pequenos, a cabeça careca, a barriga machucada do bebê. Galego fungando, fungando, pra manter quente o resto de choro, e pra que o bebê não parasse de se mexer.

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 13/03/2021
Código do texto: T7205846
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