COISAS DA VIDA

Tinhamos sido felizes até então. Se bem que o conceito de felicidade, é muito relativo, porque a felicidade é subjectiva. O que é ser feliz para um, não é necessariamente para o outro. No entanto a olho nú, eu diria que eramos felizes. Não havia conflitos e a vida seguia o seu curso normal.

O Manuel era um homem extraordinário, um homem dos sete ofícios. Não havia nada que ele não fosse capaz de fazer ou resolver. Habituei-me a confiar nele cegamente e ele conduzia a minha vida, a seu bel-prazer. Deixei de ter vontade própria, mas isso não me incomodava, porque me agradava sobremaneira, deixar-me manobrar por um homem que para mim, era uma sumidade. A minha função, era agradar-lhe e isso bastava-me. Mais tarde, reconheci que foi um erro crasso. Foi um tremendo disparate, ter-me deixado anular, tê-lo deixado viver a minha vida por mim.

O Manuel, tinha uma personalidade dominadora e voluntariosa e eu vivia como que “encantada”. Eu era a serpente e ele o Encantador. Contorcia-me harmoniosamente ao som da sua melodia. Era um privilegiado. A natureza foi pródiga com ele, dotou-o com imensos dons e predicados.

Comandava os cordelinhos da minha vida, como se eu fosse uma marioneta, mas por incrível que pareça, sentia-me bem e enquanto me sentisse bem, era apenas isso que era importante e não a opinião dos outros.

O Manuel era para mim Deus na terra. Ele não gostava de ser comandado, então eu deixava-me comandar. Ele queria ter sempre razão, então eu não proferia a minha opinião. Ele gostava de impor a sua vontade, então eu acatava as suas ordens. Não havia nada, que beliscasse a paz em que viviamos.

Anos mais tarde, por negligência minha, deixei a janela do nosso quarto aberta em dia de ventania. Entrou um grão de areia, que lentamente foi criando fricção. Era tão pequeno, que foi dificil localizá-lo. Mas quando o encontrei, senti-me completamente oca e reagi. Pela primeira vez em muitos anos, olhei de frente para mim e não reconheci essa mulher, que se deixou viver num estado de apatia e subjugação total. Onde estava aquela jovem maravilhosa, decidida, empreendedora, inteligente e sociável? Estava circulando diluída no sangue dele, que a sugou até ao tutano. Dei-me conta que na verdade, viviamos encachifrados numa redoma de vidro, onde o ar era escasso. Inevitavelmente, eu precisei de respirar um ar mais abundante e oxigenado.

Rebelei-me contra o que dantes, ilusoriamente acreditei ser a felicidade. Afinal quem estava errado, completamente desfazado da realidade era ele. Eu vivia cega, subjugada pelo seu narcisismo, prepotência e arrogância.

Ao olhar para ele, notei a magreza exagerada e não pude deixar de reparar nos canais azulados que lhe cobriam as mãos descarnadas.

Ao libertar a minha alma, caíu-me a venda dos olhos e pude ver que toda aquela arrogância, encobria um ser agastado pelo peso do mundo.

Na vida dele fui um tubo de escape, por onde saíam os seus medos, angústias, frustrações, fracassos dos outros, que ele foi pendurando no seu “cabide”. Eram tantos os casacos, que eu receava que se partisse ao meio.

Agora que me reencontrei, ao olhar a pessoa que está na minha frente, senti despertar em mim a solidariedade e a vontade enorme e desinteressada, de a ajudar.

Com voz suave e decidida disse-lhe:

Ouve Manel, quero ajudar-te a pensar, mesmo tu, que não precisas de ajuda, que consegues resolver tudo, enchendo esse teu "cabide" de casacos pesados, de medos, angústias, frustrações e fracassos dos outros, um cabide carregado dum "gosto dos outros", como estás magrinho podes partir-te ao meio e depois, simplesmente não seguras mais nada nem ninguém e eu, terei que procurar as tuas peças todas, no meio desse teu chão.

Ele encarou-me, talvez admirado com a minha ousadia, olhou-me profundamente nos olhos, deixou caír a máscara e dos seus olhos suplicantes, escorreu uma grossa lágrima, ao mesmo tempo que meneava a cabeça, num gesto de assentimento.

Agora sim eramos felizes. Conquistámos a nossa individualidade, liberdade e independência. Não podemos colocar a nossa felicidade, nas mãos de ninguém. Ninguém tem arcaboiço, para ser fiel depositário, dum bem tão inestimável.

O lugar da felicidade é nas mãos de cada um, porque ela constrói-se dentro de nós. Devemos pois, compartilhá-la com os outros e isso nos trará muita alegria. Assim sim, seremos felizes!

Tudo na vida, tem uma razão de ser e quando percebermos isso, é sinal que crescemos e quando crescemos, é sinal que não passámos pela vida em vão!

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@Maria Dulce Leitão Reis

Maria Dulce Leitão Reis
Enviado por Maria Dulce Leitão Reis em 14/03/2021
Código do texto: T7206864
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