Nica

Lino, primo distante e Marcilio eram os amigos mais chegados. Além deles havia Luiz, Marcos e José. Quando nos encontrávamos ficávamos horas a fio no oitão da igreja matriz ou no corredor sombreado da minha casa a conversar e a rir das mínimas coisas. Algumas vezes os encontros eram na casa de Lino. Lá, nos sentíamos donos do ambiente pois seus pais nunca apareciam. Era território livre. Um corredor enorme, ladeado por quartos escuros e grandes, sempre com as camas por fazer, dava acesso a uma grande sala com uma mesa ao centro e, no canto, uma velha cristaleira com espelhos oxidados na qual se podia ver algumas poucas peças de louça, resquícios de um jogo de porcelana antigo e algumas taças de vidro incompletas. Logo no início do corredor, como se para receber os visitantes diários da casa de ninguém, um senhor bem velhinho e surdo, estava sempre sentado em uma poltrona velha, com um livro na mão, absorto, ou não, na sua leitura. Ninguém lhe prestava atenção, todos entravam como se ele não estivesse ali. Não parecia se incomodar, seja por estar viajando com os personagens dos livros que lia, seja por desejar, de fato, estar invisível aos olhos dos que entravam.

Um mau cheiro peculiar e muito forte se espalhava por todos os cômodos e parecia entranhar nos móveis e nas roupas das pessoas que por ali circulavam. Era nítida a ausência de limpeza ou qualquer tipo de higienização. Os banheiros, então, eram impenetráveis, sempre sujos e com o vaso cheio de fezes e urina espalhada pelo piso de cimento encardido. Era um suplício usá-lo, principalmente, quando estávamos descalços, o que invariavelmente acontecia. Na sala de estar que dava para a praça da cidade uma das janelas, sempre a do canto esquerdo, estava invariavelmente entreaberta, fizesse sol ou chuva. Pelas frestas podia-se ver de preto mesmo não sendo viúva a mãe de Lino sempre a postos para observar os passantes. Nada, nem ninguém, escapava do seu veneno e de suas observações maldosas. Dizia-se que ela sabia tudo o que se passava na cidade e não se constrangia de divulgar aos quatro cantos, sempre na versão que mais lhe apetecia.

Nica era como lhe chamavam. Uma menina ainda, órfã de pai e mãe, era empregada da família de Lino. Não lhe pagavam salário e diziam ser cria da casa, subterfúgio típico da época para denominar crianças que eram na verdade exploradas, praticamente escravizadas. Devia ter, se muito, dez anos, negra, sempre com o olhar assustado, vazio, além de um quê de demência. Suas roupas, na verdade trapos, acentuavam mais ainda sua tristeza. Era uma caricatura de si mesmo. Ao cruzar com ela sempre sentia um certo estranhamento; via de regra fingia não vê-la.

Era uma tarde escaldante, sentados no oitão da igreja, protegidos pela sombra, se conversava animadamente sobre sexo, ou melhor, sobre o que se achava que era. Risos nervosos daqui e dali, alguns tentando mostrar conhecimento outros querendo fugir do tema e, alguns amedrontados com o rumo da conversa. Em me incluía nesse grupo quase em estado de pavor com a possibilidade de ser instado a me manifestar. De repente Lino sugere que o grupo vá a sua casa para “comer” Nica numa espécie de demonstração prática dos seus ditos conhecimentos. Informa, maliciosamente, que ela está sozinha.

Nos dirigimos então em busca da presa. O mau cheiro da casa, sempre comum, parecia mais acentuado. O grupo entra, quase quieto, passa pelo velho do corredor que dessa vez cochila sobre o livro a lhe escapar das mãos. Ninguém à vista. Sorrisos tensos. O caminho está livre. Nica está na cozinha, com uma vassoura em uma das mãos e um pano de chão na outra esfregando o piso engordurado e sujo. De pronto recebe ordem de Lino para parar o que está fazendo. O faz sem qualquer objeção. Nada é dito a partir dali e, como se já fosse uma rotina, tira a roupa lenta e naturalmente, sem medo, sem constrangimento, resignada. Ordeiramente uma fila se forma. Coloco-me no final. Percebe-se nervosismo, todos estão apreensivos, muitos fingem tranquilidade. O primeiro da fila, o mais falastrão, se aproxima e tentando demonstrar experiência esfrega seu membro mole e sem vida na vagina suada e vermelha de Nica. Nada. Ri nervosamente, faz nova tentativa. Tudo igual mas, dessa vez, num pacto silencioso, finge-se não notar. Dá-se o ato como concluído. O que será que vai acontecer comigo? Imagino que todos da fila devem estar pensando o mesmo.

O tom vermelho sangue da vagina de Nica parece mais vermelho ainda pelo contraste com o negro da pele. Nenhum desejo aparente é percebido. Ninguém fala, ninguém sorri. O olhar vazio e distante de Nica denota total alheamento à situação e ela se submete a seus algozes sem reclamar. É visível o desconforto entre o grupo e cada segundo parece uma eternidade. Meu coração bate forte, suo, a vista embaça e sinto o corpo meio que paralisado. Chega minha hora. A visão da vagina vermelha cor de sangue, o suor e o mau cheiro que emerge do seu corpo me apavora. Não consigo. Me afasto do grupo quase que correndo e quase tropeçando no velho do corredor.

Passado alguns dias, sinto receio da chacota e dos comentários maliciosos. Mas, no oitão da igreja os amigos nada comentam sobre a pérfida aventura. Éramos cúmplices.

FCintra
Enviado por FCintra em 23/03/2021
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