BEM VINDAS

O ritmo dos dias e suas pequenas passadas, em uma cidade qualquer, como no poema, o inventor vivia perdido entre tantos espaços dispersos. Porém, antes, antes de um dia como esse, em que a tarde parece descer lentamente permitindo algum tipo de esperança pressagiada pela noite. Nessas tardes, as pernas do tempo tombaram, ou vai ver ele mesmo, sim, cambaleava pelo corredor do apartamento, não por embriagues, antes de tudo: uma brusca serenidade sobre as constantes mortes a sua volta.

Uma tarde exatamente igual a qualquer uma dessas de janeiro. A janela permitia a entrada de algo até cósmico, poderia dizer, um ar diferente, e quem sabe – eu sei tão pouco de mim e dessas solidões, permitindo-me outra vez rasgar papéis velhos, material de memória, como as paredes brancas do meu enclausuramento, dia e noite.

Falava da tarde; caso fosse observado pela janela; aguçada curiosidade de transeuntes banais, diriam sobre ele: serenidade, tranquilidade, nunca turbilhão ou emoção. Embora, seu cambalear pelo corredor convergisse para o martírio de entender o fim de mais um dia, feito uma matéria espessa sob um sol de meio dia metamorfoseando-se quantas vezes fosse necessário, para entrar mais uma vez em negação, ainda que houvesse tantas mutações premeditadas pelo tempo.

Os pequenos restos de qualquer coisa invadia a casa pela janela, se lá fora um passarinho cantasse, sua atenção seria desviada do corredor, o reflexo o faria notar o desnorteamento entorpecendo o corpo e mente, os pelos dos braços ficariam eriçados e ele daria um passo para trás, contemplaria o vazio entre a sala e a cozinha e perplexo ficaria ao tornar em consciência as belezas comuns – que de um jeito extremamente sensível haviam tornava-se banal a sua visão, porém não menos belo.

O marasmo da tarde não permitia passarinhos e nem pombinhas voando ou algum tipo de gesto que quebrasse o silêncio de uma matéria morta, de uma memória pouco a pouco entorpecida. E seguia o trajeto, aceitando os pedaços de pequenas memórias puídas e quase apagadas, ele, a sala, o corredor, a cozinha.

Justamente por não ocorrer nenhuma dessas ações, ele não desvencilhou de seu andar cambaleado e não pode se voltar para abraçar o mar, como pensou, naquele instante. Tão íntimo esse sentir no peito a imensidão do mar, de um vazio convergido para o renascimento ou nascimento ou apenas um espaço sem tempo, sem deus, sem homem, sem gentes, como a saudade de permanecer dentro do útero, antes de ser expelido para a terra nu, descalço e cheio de sangue, mas o mar, dizia para sim, como fosse um desses de recitar poemas, o mar não nos joga para fora, como o útero que nos cospe, o mar nos permite o entrar e o sair, o mar que queima a pele levando esses restos acumulados pelo caminho, o mar leva tudo, é doce, disse tão claramente para si e notou a tarde indo embora e redisse: é doce, o mar é doce, lembrando de pequenas histórias de fadas, tempo remoto, tempo de menino, tempo de dentro.

Ali, ele se encontrava parado, aquele corredor, seu andar cessara, o que já não podia controlar, assim como as mãos tremulas à procura de um cigarro no bolso do short, o isqueiro, as coisas mortas que nunca seriam veladas, ou os lençóis, no varal. A tarde se ia, pessoas apressadas lá fora, indo para suas casas, e os lençóis, que ele pensou fixamente como quem mentaliza um compromisso importante, mas era um dia tão normal, aquela tarde de janeiro, ele já nem cambaleava mais, encostado na parede do corredor imaginando a luz indo embora, as pessoas apressadas, quantas mortes até aquele ponto? aquela tarde.

Pareceu-lhe fantasias de um mundo tão blues, parecia trágico ou cômico, encontra-se em tanta solidão, se dar conta da inutilidade dos dias vividos de passados, presentes improváveis e futuros impossíveis; e ainda que conseguisse notar o mar – dentro de sua cabeça – ou aquele lençol no varal e perceber como se constitui os pequenos instantes que formam a rotina das pessoas comuns, ainda com tanta sobriedade derretendo o torpor do seu corpo, de algo do de dentro dele, percebeu a diferença entre entender e conseguir se encantar novamente, referente a um livro que se tem a louca curiosidade de ler até não resta mais interpretações possíveis, a vida, esse suicídio lendo, de várias cores, retalhos, pedaços e pessoas e a luz que jamais desceria sobre os inventores, esses que fazem da solidão algum tipo de refúgio, ironicamente, detestando-a, nesses fins de tardes, de um dia de janeiro.

Onde se perceber o vazio.

Jailson Anderson
Enviado por Jailson Anderson em 29/03/2021
Código do texto: T7219071
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