ANATOMIA DE UMA TRAGÉDIA

Eis a cena: o corpo de uma mulher pequena está debaixo do meu carro. Não conheço seu nome nem seus planos para o fim de semana. Não saberia me defender se fosse levado agora às raias de um tribunal. É possível que a mulher morra. Ao fim do dia serei um homem com sangue nas mãos. Serei para sempre um amaldiçoado cidadão, daqueles para quem se vira o rosto na rua. Inocente ou culpado? Um grupo de notáveis possivelmente vai deliberar sobre isso. Não há muita coisa que eu possa fazer em meu favor.

Não há muito tempo para pensar nas opções a seguir. O corpo da mulher pequena continua inerte. Talvez ainda haja algum tipo de vida dentro dele. Saio do carro, olho a rua. Um homem velho corre em direção a mim. É possível que ele saiba o que fazer a partir de agora. Parece ser um homem sábio pelo jeito que corre, decidido.

Não olho o relógio, mas parece que o tempo parou. Apesar de parado, um grupo se forma à minha volta. Talvez sejam vinte pessoas. Não sei de onde vieram e com quais propósitos. Todos falam ao mesmo tempo. O conceito de torre de Babel fica claro para mim por algum momento. Não sei quais palavras usar para aplacar a multidão.

O que se segue não pode ser considerado um diálogo por nenhum linguista. Todos, em sons bem altos, falam ao mesmo tempo. O resumo dos brados é que o homem de bermuda atropelou a mulher e ela precisa urgente de socorros especializados. Eu sou o homem de bermuda. A mulher pequena ainda respira, segundo a senhora de roupas largas e que parece ser a nova protagonista do filme de horror em que estou preso.

Balbucio palavras. Algo como me isentando de culpa, que a mulher pequena que ainda está debaixo do carro, teria atravessado a rua sem olhar para os lados. Em alguma narrativa precária eu expliquei a situação. Não estou totalmente certo se foi isso o acontecido. Talvez tenha sido. É a minha tese no momento. A palavra foi lançada. Imagino que o meu lema é repetir isso diante de todos os meus inquisidores.

Sento na calçada. Coloco as mãos na cabeça. Talvez seja a atitude de um culpado, poderia dizer algum psicólogo forense presente no recinto. Mudo a postura. Continuo sentado, mas a cabeça fica entre os joelhos, olhando as formigas no chão. Por algum momento invejo aquelas formigas. A minha condição no momento não é mais favorável que a delas. Talvez alguma delas olhe para cima e se sinta solidária comigo por alguns segundos. Depois talvez ela resolva seguir seus afazeres. Talvez ela não se importe mais com meu destino. Não sou mais responsabilidade dela.

A vida da mulher pequena que agoniza embaixo do carro parece ser da minha responsabilidade. Algumas pessoas me olham, falam comigo, talvez até estejam me amaldiçoando. Algum tipo de transe me transporta dali. Consigo me imaginar em casa regando as plantas e alimentando o cão. Estaria lá executando essas tarefas tediosas agora caso não tivesse virado um pouco antes da rua que sempre virava. O que teria acontecido? É a pergunta que parte de mim faz agora, sem resposta.

Os bombeiros chegam e removem a mulher pequena para uma maca. Colocam-na dentro da ambulância. Antes de partir, um dos socorristas conversa palavras protocolares comigo. Faz as perguntas de praxe, ouve as respostas de praxe. Insiste que eu aguarde a chegada da polícia para os trâmites oficiais. Usa essas palavras. Vencido pelo cansaço que tudo isso me causa, eu consinto com a cabeça. Todas as minhas expressões me condenam. Até em meu próprio tribunal.

O grupo não para de crescer. Sem a estrela principal da trama, a moribunda mulher pequena atropelada, duas coisas irão acontecer, segundo minha previsão: o interesse da multidão vai esfriar e talvez eles vão para casa cuidar de suas próprias vidas; e como eu me tornei agora a única parte envolvida presente na cena, todas as atenções se voltarão para mim. Confesso que essa possibilidade me assombra. Não nego que desejo que a mulher pequena ainda estivesse agonizando embaixo do meu carro. E que assim ela permanecesse até tudo aquilo, de alguma forma, acabar em final feliz para todos nós.

Minha profecia começa a se cumprir. Eis o meu próprio apocalipse: sou cercado por alguns membros mais exaltados do grupo. Gritam comigo, perguntam por que não consegui desviar o carro da mulher pequena. Exigem respostas que eu não posso oferecer no momento. Em nenhum momento talvez.

Julgo que estaria melhor se estivesse na condição da minha vítima. Embaixo do carro de um estranho por minutos e depois em algum pronto-socorro com dedicada equipe médica lutando para me salvar a vida. Eu estou ali entregue aos abutres, que exigem de mim explicações exatas, que eu volte no tempo e evite o acidente. Talvez queiram, por algum senso de justiça, que eu também esteja sofrendo castigos físicos. Aos olhos daquele tribunal de rua eu sou um homem sem fratura no corpo que tinha acabado de praticamente matar uma mulher inocente. É preciso que eu tenha algum tipo de sofrimento. Se eu fosse neste momento o homem com mais remorsos e culpa no mundo seria visto com algum tipo de tolerância pelos homens e mulheres que me faziam companhia.

Para algum tipo de alívio da minha parte a polícia chega ao local do acidente. Minha vontade é ser algemado logo para que finde esse suplício. Alguns dedos apontam para mim, como que para apontar o culpado da tragédia. Só falta o beijo de Judas para a cena ficar mais dramática. Mesmo sem o beijo de algum traidor, fica bem claro para os homens da lei que eu sou o homem que eles querem. O homem que havia atropelado e talvez matado uma mulher no trânsito. Caso a mulher não resistisse aos ferimentos, eu seria o 23º cidadão a tirar a vida de outro cidadão usando um carro como arma durante o ano nas ruas da cidade. Não sei por que fui informado desse detalhe estatístico. Algo em mim se aterroriza com essa informação. Passo a desejar ter algum poder sobrenatural e impedir que a mulher morra.

Após recolher meus documentos, fazer perícia no carro, medir o asfalto, me interrogar, ouvir testemunhas, os policiais exigem que eu os acompanhe até a delegacia. Lá irão decidir meu destino e proceder com as formalidades legais. Pergunto se eles têm notícias da mulher pequena. Um dos policiais diz que o quadro dela é grave e que faria bem se eu rezasse para ela viver. Caso ela morra, ele disse, eu poderia ter algumas complicações. Agradeço a informação e o conselho. Obedeço a ordem e sigo na viatura. Não estou preso, pelo que noto.

Mesmo assim, o grupo que me fez companhia naqueles minutos infinitos parece estar saciado de justiça. É uma migalha da lei, mas já é suficiente para eles no momento. Já podem voltar para suas casas, para suas repartições. Serei assunto na mesa de jantar de muitas das casas daquele bairro. Possivelmente, serei o vilão da semana. Outras semanas virão, outros vilões se apresentarão, mais cruéis.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 31/03/2021
Reeditado em 20/04/2021
Código do texto: T7220350
Classificação de conteúdo: seguro