O Sonho de Nicolau

Depois de quase um mês afundado pelos mais remotos e misteriosos recantos da Terra, e de realizar um sem fim de façanhas tremendas e aventuras assombrosas, o herói Nicolau Bacamarte resolvera descansar num bosque de aspecto agradável. O cansaço finalmente conseguira tirar o seu fôlego de aventureiro, e por isso, lá estava ele procurando um bom local para uma soneca como um viajante comum, e não como o herói tremendíssimo que era. O crepúsculo já se aproximava e sem ter mais o que fazer por ali, nosso herói ponderara que o melhor seria dormir logo. Aquele bosque velho como o mundo, cheio de plantas exóticas e exuberantes além de animaizinhos pacíficos eram um convite a uma boa soneca. Nem da fome ele se lembrara. "Os grandes cansaços tiram a fome!" - conforme diria ele anos mais tarde ao seu amigo Vladimir Lenhador.

Nem ao menos o cuidado de acender uma fogueira para afastar as feras ele teve. Nicolau já estava com a cabeça na Lua.

Dormiu finalmente. Ele estava realmente cansado, mas havia algo naquele bosque que parecia influenciar a terrível sonolência sentida. Talvez fosse o silêncio incomum daquele lugar, ou a escuridão (que não dava medo), ou quem sabe ainda, a brisa suave que dançava daqui prali como uma bailarina fantasma.

Não havia dúvida. Aquele não era um bosque comum. Com tantos bosques no mundo, Nicolau escolhera justamente um encantado para tirar sua soneca. Isto é claro, não deveria irritar nosso herói. Uma criatura como ele, acostumado aos acontecimentos mais assombrosos e inéditos, já deveria saber que nem durante o sono estava livre de viver situações que fogem do normal.

E seu sono foi dos mais agitados. Tão fantástica fora aquela noite, que no dia seguinte, já longe dali e com mais calma, ele relataria tudo em seu inseparável diário de aventuras. Segue abaixo, com extrema fidelidade, todo o relato de Nicolau Bacamarte sobre o sonho por ele sonhado naquela esplêndida noite.

"Uma noite dessas eu tive um sonho. Mas se tivesse sido um mero sonho como estes em que sonhamos todas as noites e que não têm sentido algum, não estaria relatando aqui. Foi um sonho misterioso, denso, e até certo ponto, parecia mais um pesadelo.

Eu não me lembro onde eu estava. Pouco fazia diferença. Só me lembro da criatura que se aproximara de mim. Eu via apenas um vulto. Não conseguia ver seu rosto, nem como estava vestido e nem se era homem ou mulher. A única coisa que eu podia ver, e ver muito bem, eram seus olhos. Lembro-me que eram muito bonitos.

A criatura chegou até mim e foi logo dizendo:

-Poucos chegam até aqui. E os que chegam esquecem o caminho.

Eu não sabia o que dizer após ouvir palavras tão inesperadas. A criatura continuou:

-Tu viestes aqui em busca de respostas, eu bem sei. Mas não vais querer saber das respostas.

-Por quê? - eu estava com a cabeça vazia. Era como se eu fosse dizendo justamente aquilo que a criatura queria, para que ela pudesse dizer tais e tais coisas.

-Porque são verdades, e as verdades não agradam. Os reis e papas brigam por ela, assim como os ditadores e seus exércitos...

A criatura insistia em dizer coisas misteriosas e eu continuava sem entender e devo ter feito tal cara de desentendimento que temi que a criatura se irritasse e fosse embora. Mas não foi assim. Com seu jeito calmo e seus gestos severos, a criatura começou uma narrativa estranha com seus belos olhos fixados em mim. Disse-me coisas aterrorizantes sobre os destinos da humanidade. Revelou-me que restam poucos anos para acontecerem terríveis desastres que engolirão milhões de almas. Enquanto o homem estiver lutando desesperadamente para salvar o último resto de dignidade que ainda lhe sobra, sobrevirão catástrofes que dirão ser a "Ira de Deus". Terá sido tarde demais para o homem criar juízo. A natureza lançará sobre os sobreviventes das guerras das cidades, o fogo e o enxofre, a água salgada e seus mais desconhecidos, terríveis e devassos vassalos que dormiam dentro das florestas.

Dirão que é o anticristo, mas será tarde demais para clamar por Deus.

Falou-me sobre astros intrusos que causarão distúrbios na Terra. Causarão maremotos assombrosos que engolirão muitos países.

Contou muitas outras coisas bizarras que castigarão a raça humana. Por fim, quando eu já estava com o rosto sombrio e com uma ligeira revolta em meu coração, além de um mal-estar no estômago, atrevi-me a perguntar encarando-a:

-Quem és tu afinal? És algum anjo mensageiro?

-Não sou anjo - explicou calmamente - mas se fosse anjo teria lhe dito as mesmas coisas, pois o Senhor dos Anjos sabe de tudo o que está por vir, e Ele permite que os anjos avisem aos humanos.

-E como Ele permite que estas coisas aconteçam? - eu estava quase gritando.

-Ele não permite - volveu a criatura - Está em vossas mãos. Mas o vosso mundo terminará assim como tantos outros já terminaram independente de vossa vontade ou Dele. Vós vos considerais muito importantes, pois não sois. Vossa raça não durará para sempre. E tudo o que podeis fazer, é não tornar este fim pior do que o fim que fatalmente irá acontecer.

Sem ter mais o que argumentar sobre este assunto, tornei a perguntar:

-Então, quem és tu? És algum ET?

-Não sou ET, mas se fosse, teria lhe dito as mesmas coisas, pois os ETs são estudiosos da vida na Terra, desde tempos imemoriais, e portanto sabem de muito do que vai acontecer. Talvez até tenham participação em alguns...

Não fiquei espantado com esta revelação como certamente esperava a criatura. Após tantas revelações, uma a mais não me causaria terror. Além do mais, eu já suspeitava daquilo...

-Então...és algum espírito ruim, mensageiro das desgraças...- concluí, e dito isso, dei dois passos para trás, já com a mão na espada, temeroso que a criatura confirmasse minhas suspeitas. O combate seria feroz.

-Não sou nenhum súdito de Azmodeo - retrucou nem um pouco ofendida - Mas se fosse, teria lhe dito as mesmas coisas, pois o que o senhor dos subterrâneos infernais quer, é que o pânico vença a esperança.

-Então quem és tu? Maldito sejas!

-Fosse quem eu fosse, teria lhe dito as mesmas coisas pois...

-Tá bom!-atalhei abruptamente - chega desta história, que eu já ouvi mil vezes! - eu estava realmente revoltado com tudo aquilo que acabara de ouvir. Embora no fundo eu não tivesse ânimo, e tampouco razão para defender esta nossa humanidade, indignara-me o modo frio e indiferente com que aquela criatura narrava nossas futuras desgraças. De qualquer modo, a criatura não me respondeu de imediato. Ficou apenas me olhando com expressão indefinida, e eu realmente achei que estivesse zangada comigo pelo modo rude com que eu lhe interrogara.

Mas não. Enganara-me. Depois de alguns minutos em que vi primeiro o sol, e depois a lua e as estrelas e depois novamente o sol enfeitarem o céu, a criatura me falou em tom sereno:

-Queres saber de fato quem eu sou? Pois sou vosso futuro...seu e de toda a humanidade. Por isso sou apenas um vulto. Por isso não podes ver como sou. Sou nebuloso e incerto.

-E por que tem olhos tão bonitos? - atrevi-me a perguntar em tempo.

-Porque estes olhos representam a esperança e tudo de bom que a esperança e a pureza da alma podem fazer.

Então senti um certo alívio. Eu ainda podia identificar um tom positivo nas palavras do Futuro. Talvez ele estivesse dizendo que há ainda solução. Talvez estivesse mostrando o caminho...

-Sr.Futuro... - e eu tentei perguntar mais alguma coisa, ou tentar fazer algum comentário, ou mesmo apertar-lhe as mãos...mas não consegui. E neste momento, o Futuro fez um gesto misterioso, (mas ainda assim...algo familiar), e eu entendi na hora que a conversa terminava ali. Ufa! Que alívio...

-O Presente! Pense no presente. Sem presente não há futuro! - e dizendo isso, foi embora esfumaçando-se todo.

Acordei intrigadíssimo com o sonho. Qual seria seu real significado? Ou nem teria um? E por que fui escolhido? Por fim, resolvi fazer como sempre faço nestas ocasiões: não me preocupar. "Se não podes resolver, então não te preocupes", digo.

p.s: acredito que o futuro nos dirá

N.B