RUMO AO COXOMONGÓ

Conhecer um povoado típico e genuinamente sertanejo, sempre foi o meu sonho. Por isso quando ouvi o zelador do prédio vizinho descrevendo com entusiasmo, para o nosso porteiro, as maravilhas de sua terra natal, um lugarejo perdido no meio do sertão nordestino, me interessei de imediato pelo assunto. Tanto que, me intrometendo na conversa, procurei saber aonde ficava exatamente aquela localidade e como se poderia chegar até lá. O homem vibrou de emoção ao saber que alguém estava interessado em conhecer a sua cidade. Deu-me todas as informações mas, também, me pedira um favor: que eu fosse o portador de vários recados para seus parentes e amigos conterrâneos, caso, naturalmente, eu vinhesse a visitar à sua terra.

Assim, chegado um certo fim de semana, lá estava eu, na rodoviária, feliz da vida, dentro de um coletivo, pronto para partir rumo ao Coxomongó - êste era o nome da cidade de origem do zelador, o local que eu mais pretendia conhecer naquele momento.

Mas, o ônibus estava completamente vazio. Estranhei. A princípio pensei que era porque ainda estava cedo porém, aproximando-se o instante da partida, não me conformei. Perguntei, então, ao motorista que acabava de entrar:

-Por gentileza: êste é mesmo o ônibus que, neste horário, sai para Coxomongó?

- É sim, moço - confirmou ele. - Sai agorinha, mermo. Teja à vontade!

Fiquei mais espantado e disse:

-Mas não há mais nenhum passageiro! O único aqui sou eu... não é possível!

-Ô, xente! - rebateu ele - O moço tá achano ruim?! Num vê que assim é mais sossegado e confortave? Pois pode escoiê o assento que quizer...

O cobrador, um tipo sergipano, que escutava tudo lá embaixo, recostado na porta, intrometendo-se, arrematou:

-Ói, moço, nóis agora inté que tivemo sorte, achano o distinto pra mode viajá cum nóis.

-Deixem de brincadeira! - respodi.

-Né brincadeira não, moço. Nóis só viaja cum o carro puro, mermo.

E ele parecia falar sério. Aí, eu disse:

-Pelo visto, esta emprêsa deve estar na falência e seus proprietários, a essa altura, devem estar desistindo do negócio.

-Tá desistino não, moço - interveio o motorista. - Na verdade já desistiu e esta é a nossa derradêra viage.

Não diga uma coisa dessa! - respondi meio nervoso. (O ônibus já estava em movimento.) - Como vou poder retornar? Melhor será eu ficar logo aqui.

O motorista, então, me tranquilizou:

-Num se agunei, não. Num farta condução lá pra mode o moço vortar.

-Graças a Deus! - suspirei aliviado. - Quer dizer que ônibus de outras emprêsas passam, também, por lá?

-Não sinhô, num foi isso que quis dizê - explicou-me o condutor, no seu falar fanhoso e candenciado. - Mas é que toda sumana tem sempre um carro "pau-de-arara" arribando da região.

-Ah, eu não acredito! Pau-de-arara? Pelo amor de Deus! E isso ainda existe?

-Ôxe! - fez o motorista.- Quem dixe que esse transporte acabô? Continua sendo o preferido do pessoá de lá!

-Não é possível! - exclamei, conseguindo me descontrair um pouco. - Como se pode, nos dias atuais, dá preferência, a esse tipo de transporte?

-É... - apressou-se em esclarecer, o motorista - mas num pense que o nosso povo é atrasado, não. Só viaja de "pau-de-arara" por causa é mais barato.

-...E mais arejadinho, tombém! emendou o cobrador, desconcertando o seu colega.

-Então, por que motivo acharam de colocar ônibus para um lugar desse? - indaguei.

-Foi coisa do Seu Manele Ontonho - respondeu-me o cobrador.

-Quem é ele... é o prefeito?

-Não, sinhô. Mas manda mais lá do que todo mundo.

-Aposto que ele deve estar bastante arrependido depois deste prejuízo.

-Arripindido?! Apois, eu acho que não, moço.

-Por quê?

-Óia, moço: o cabra é rico de num saber aonde botar dinhêro e, adepois disso, quis mostrar ao povo lá da cidade vizinha que o Coxomongó tá agora adiantado. A outra tem água, tem luz, tem inté esgoto, mas num tem ônubo!

-Ah, me desculpe, mas não concordo - disse-lhe eu. - Antes a sua cidade tivesse tudo isso, também, você acha?

-Apois é. Agora é que Seu Manele Ontonho num home de invejar ninguém, sabe moço?

O meu interlocutor parou e, depois de uma breve pausa, retornou ao colóquio:

-O moço num conhece mermo nada do Coxomongó, né?

-Não - respondi.

-Nunca têve lá, né?

-Não. Será que estou deixando alguma dúvida?

-De jeito nenhum. A coisa mais difice, mermo, é uma pessoa visitar o Coxomongó duas vêis.

-Puxa! O lugar é tão ruim assim?

-Não! Num é isso. É por causa que ninguém de fora se acostuma cum o crima de lá... num é, Seu Rufino?

Rufino era o motorista que, de lá da frente, respondeu afirmativamente, sacudindo a cabeça. E o meu companheiro quis saber mais ao meu respeito:

-Garanto que vai é a negoço, né moço?

-Não; a passeio.

-A passeio?! - exclamou ele com a vista esbugalhada.

-Sim. Qual o problema?

-Cuma?... Ah, eu só me espantei por causa que nunca vi ninguém ir ao Coxomongó pra passear. É que lá tem pouca animação, sabe moço?

-Então, está bom pra mim - disse-lhe eu. - Um lugar tranqüilo é exatamente o que estou procurando.

-Ah, se assim, já sei que o moço vai adorar. Êita, lugarzinho calmo da peste! Quietinho, sossegado! Home, aquilo ali (pregunte aí ao seu Rufino) é que nem deve ser o céu!

-Ótimo! Não existe mesmo barulho, não é?

-Não sinhô. De jeito nenhum. Só de vêis enquando é que tem lá uma besteira de uma peixeiradazinha, de uma uma brigazinha de facão, ou argum tiroteiosinho, mas num morre muita gente, não.

-Hein?! Brigas de facão, de peixeira, tiroteios, mortes... e você ainda me dizendo que um lugar desse é parecido com o céu?

-Ô, moço, num se avexe, não! Essas brigazinhas é só pra mode esquentar. O moço sabe cuma é: lugá piqueno do sertão, o povo véve parado, sem distração, entonce...

-Já entendi, amigo - interrompi e, com o coração ameaçando sair pela boca, tratei de não perguntar mais nada. Fechei os olhos e fingi, então, que tirava uma soneca. Não demorou muito, entretanto, quando comecei a sentir uns solavancos e, "despertando" do meu cochilo falso, olhei através da janela. Aí verifiquei que o ônibus deixara o asfalto e seguia agora por uma estrada vermelha de cascalho, toda esburacada.

-A estradinha, aqui, parece que não está nada boa, não é amigo? - comentei com Rufino em voz alta para que ele me ouvisse. (O ruído do motor do ônibus era infernal!).

-Ô, xente! - respondeu-me ele - A estrada aqui tá uma beleza! Adiante é que o moço vai ver o que num é boa!

-Como? Não me diga que ainda vamos passar por buracos piores do que estes!

O motorista e o cobrador caíram na gargalhada. Aí disseram:

-Isso aí num é buraco! Buraco, o moço vai ver é acolá! - e apontavam para frente do caminho.

E realmente. Pouco depois começaram a surgir buracos tão grandes que eu pensei tratar-se de projetos da antiga SUDENE. O ônibus ía em zigue-zague, contornando as crateras, ora pela estrada, ora pelas margens que eram cobertas de arbustos secos e algumas espécies de cactos. Duvidei até que o carro podesse ir muito longe. Mas, para minha sorte, o motorista guiava o veículo através da buraqueira, como um vaqueiro deve guiar, através da caatinga, o seu gado. Aliás, o motorista tinha mais cara de vaqueiro do que propriamente outra coisa.

-Esta buraqueira aqui é causada pela chuva, amigo? - indaguei ao cobrador.

-Chuva?! - exclamou ele. - Chuva, nóis só conhece é de bala, moço!

E já ficando bastante nervoso, fui logo perguntando:

-Pelo amor de Deus, antes de chegar nesse tal de Coxdomongó, êste ônibus pára em algum lugar?

-Pára, ô xente! Pára e num é pouco - respondeu-me o cobrador.

-Pois quero ficar no primeiro povoado que chegarmos.

-Povoado?!!! Ôxe, ôxe!...daqui pra lá é tudo deserto, moço!

-Espere aí... - rebati - você não acabou de me dizer que o ônibus fará muitas paradas?

-Dixe, sim, sinhô. Pois daqui inté chegar no Coxomongó, é costume do carro quebrar uma pecinha: é o feixe de molas, é caixa de marcha, é barra de direção, isso sem falar nos pineu que sempre fura. Entonce, o jeito é nóis parar.

E já sem suportar mais o nervorsismo, pedi:

-Pelo amor de Deus, do padroeiro de Coxomongó, do seu padrinho Padre Cícero, parem agora, aqui, mesmo, que eu quero descer!

-Ô xente, moço! Num carece implorar, não. Nóis pára adonde o sinhô quizer. Agora, se mal num lhe pregunto: o moço tá armado?

Armado?! Mas, pra que eu vou andar com armas, meu amigo? Isso é até proibido!

-Arre-Maria! Já vi que o moço é uma criatura inocente! Quer inté sartar num lugá desse, desarmado!

-Mas, por quê? Existem, por acaso, assaltantes neste deserto?

-Pior do que isso - asseverou-me o motorista.

-Sabe o que estou achando? - disse-lhes eu. - Que vocês estão tentando me amedrontar.

-Que é isso!!! - protestou o cobrador. - Nóis só tá quereno o seu bem, fio de Deus!

-Então, o que há para me atacar neste fim de mundo?

-Assunte, moço: tá ficando já de noitinha e... o moço já ouviu falar ni suçuarana?

-Suçuarana?... Não é uma espécie de onça que caça à noite?

-Éi essa merma! Já viu arguma?

-Não. Mas conheço a "fama" dela. Afinal, sou um aficionado da zoologia e, modéstia à parte, conheço bem a nossa fauna.

-Entonce, mió!

-Mas, por quê? Vocês não estão querendo me dizer que por aqui existem...

-Isso mermo, moço. Aqui, nestas bandas, tá infestado dessas bichas danadas e tudo esfomeada por causa da seca. Agora, se o moço tá disposto mermo a sartar, num vá dizer lá em riba, no outro mundo, que nóis aqui num lhe avisemo!

Comecei a suar frio. Resolvi, como era óbvio, continuar a viagem. Mas, aí lembrei de que o cobrador me havia também falado da existência de uma cidade próxima a Coxomongó. Aquela que tudo possuía, menos ônibus. Certamente, deveria ser uma localidade mais desenvolvida e, por conseguinte, menos agreste do que essa para onde eu me dirigia. E voltando a conversar com o cobrador, procurei me informar melhor sobre aquele local. Fiquei sabendo que se tratava de outra pequena cidade, embora um pouco maior do que Coxomongó, conhecida como Serra Branca e distante não mais do que trinta quilômetros da primeira. Este lugar - pensei - bem que poderá ser a minha salvação. Então, me dirigi ao motorista e, arriscando, fiz-lhe uma proposta:

-É possível prolongar esta viagem até Serra Branca, pagando a diferença da passagem?

-Ô, xente! Craro! - garantiu-me ele, para a minha satisfação. - Agora, moço, é um pouquinho sargado.

-Não tem problema - afirmei já que, naquele momento, eu era capaz de tudo. - Só espero que essa decisão não vá criar nenhum transtorno entre o senhor e a emprêsa.

O motorista, então, sorriu e me explicou:

-Moço: quem decide tudo aqui éi eu. Manele Ontonho é meu cunhado!

-Que bom! - disse eu, com animação. - Sendo assim, sigamos direto para Serra Branca!

-Apois tá certo! - exclamou ele. - Agora se mal num lhe pregunto: o moço tá gostando é do ônubo ou é da viage?

-De ambos - respodi. Tinha que ser irônico, também. - Agora. quero chegar à Serra Branca o mais depressa possível!

-Ô, xente! - interveio, prontamente, o cobrador, como se nada estivesse ainda entendendo. - Num vai dar nem uma sartadinha na terra da gente?

-Não - respondi. - Não há necessidade.

-Ôxe, ôxe! - fêz ele, sacudindo a cabeça negativamente. - Num quer mais conhcer o Coxomongó!!! Só tá avexado agora é pra ver Serra Branca! Tá veno, Seu Rufino?... Éita povinho compricado, esse povo da capitá!

-Viiixe! - completou o motorista.

E, assim, lá fomos nós. Agora sentindo-me mais aliviado porém, confesso, muito frustrado, também. Afinal, descobrira que ainda não estava preparado para conhecer, possivelmente, o mais autêntico povoado do nosso sertão.