NUMA CIDADE SEM ANJOS

As inúmeras vicissitudes que tinham marcado a sua vida não tinham conseguido afastá-lo do caminho.

Porquê?

Mesmo agora que os colegas da empresa aproveitaram a hora de almoço para irem num pulo até ao bairro problemático colher uma amostra de ambrósia para aguentarem a pressão do trabalho da tarde com as suas metas vertiginosas, os seus rankings competitivos e as leis crueis e implacáveis das inter relações sociais.

- Não queres vir connosco?É pura adrenalina!Um pedaço de céu.

Ele pudera responder seguro e sem hesitações:

- Prefiro não.Obrigado.Depressa ficaria escravo.E eu prezo muito o desprendimento.

E conseguira-o dizê-lo sem juízos críticos.Naturalmente.Apenas se descartara a si próprio dessa demanda inglória como o exercício de um direito próprio.

Talvez tudo se devesse à uma bem sucedida socialização primária, iniciada em casa, no seio da família.

Os pais tinham planeado o seu nascimento,A mãe não regateara o sacrifício de o amamentar, passar as noites em claro e amá-lo incondicionalmente desde o primeiro momento sem nunca se vergar ao facilitismo e indicando-lhe sempre o caminho dos bons hábitos.Contrariou-lhe os impulsos egoístas delicada mas firmemente.

João fora amado mas subtilmente conduzido a bons portos com uma firmeza inabalável.

E o pai tivera um papel decisivo nesse percurso.Ensinara-o a andar, a falar, a ver.Introduzira no momento certo os brinquedos adequados, a bicicleta, os jogos.Levara-o consigo nos seus momentos livres.Fizera dele a sua actividade mais respeitada e importante.Explicara-lhe sempre os porquês.Renunciar, esforçar-se, trabalhar com afinco, estudar arduamente.Ser mais.Dizer e aceitar um Não que contrariasse as suas expectativas mais ardentes.

Ensinou-o a defender-se e a ser cooperante.Fortaleceu-o.Fez-lhe ver o valor da amizade e como se faz para merecer a confiança.A aprender a aguentar os desaires, não desistir e ir á luta.

Não teve dificuldades em adaptar-se á escola, aos outros, a tentar gerir os conflitos e a respeitar os professores.

Na puberdade, o pai explicou-lhe:

- O teu corpo, os teus órgãos e a tua voz vão modificar-se.Em breve vais estar apto para colher o doce fruto do sexo.Mas o que vai contar é que o não desfrutes ao desbarato e sem controle.Deves procurar satisfazer-te e satisfazer os teus parceiros.E isso é uma dávida.

Falou com ele, deu-lhe livros, proporcionou-lhe as primeiras experiências e esteve sempre disponível para falar sobre elas sem pudor nem superioridade.

- Não.Não podes fazer isso! Por isto, escuta…

Impôs-lhe autoridade, ética, humanidade, amor e generosidade.Levou-o a apreciá-los e a cultivar o trigo, separando-o do joio.Não deixou de ser um trabalho árduo.

E,um dia, pouco depois de fazer vinte anos,João perdeu o pai num trágico acidente de viação.

- O meu pai foi o meu professor, o meu melhor amigo e o meu crítico mais sincero e bem intencionado.Vai estar sempre comigo.No coração e na mente.Tenho a certeza.

Foi um desgosto imenso mas ele sentiu que não iria ficar decerto á deriva.O progenitor soubera dar-lhe o essencial e , em sua honra, ele iria saber cumprir o seu legado.Principalmente na adversidade.Mesmo numa cidade sem anjos.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 19/04/2021
Código do texto: T7236239
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.