Ananda, salamandra (março de 2020)

De aqui de casa até a casa da piranha são duas esquinas e uma rua inteira. Mas não é por isso que, dada a distância, eu não tenho medo dela. Eu, mulher, de vinte e poucos anos (não vou falar a minha idade certa), já cruzei perigosamente o caminho de Ananda uma vez e continuo de pé depois disso. Talvez Deus foi quem quis assim.

Ananda, salamandra: macumba. Conheço uma senhora cujo marido andou se enrabichando pela bruxa de subúrbio. Sim, tudo o que narro se passou aqui, no subúrbio. Duvido que nas casas bonitas das madames que moram perto da praia, perto do mar, esse tipo de história que vou contar acontece.

Mas vamos à senhora do marido de quem ficou apaixonada a bruxa. Ananda fez seus encantamentos e em menos de um mês a senhora estava entrevada na cama, com doença ruim da qual jamais se recuperou. Dizem que a maléfica é belorizontina, e veio para cá fugida de linchamento pelos lados de Minas.

Eu tinha homem meu, fiel até enquanto pudesse impedir que olhasse para outras ancas com meus beliscões bem dados. Não acredito que tenha homem cem por cento fiel, mas a gente dá sempre uma ajudinha, um chute na canela, um beliscão doído. Mas se o anjo de Deus não ajudar também não tem jeito: o homem da gente fica encantado por outra.

Já vi mais do que meus dedos da mão podem contar de maridos que caíram enfeitiçados pela piranha. E ela parece que gosta assim. Tem sempre um séquito grande apaixonado e ofertando-lhe flores para que tenha a oportunidade de escolher seus amores. Sim, e sempre no plural: muitos amores.

Filho ela não parece ter. Ou não conhecemos nenhum por aqui. Dá para pensar que além de macumba entende de práticas abortivas. Mas o olhar é de pura bondade. Não dá para pensar que aquela mulher cândida, pequena (um metro e meio de altura), muito branca e de cabelos pretos escorridos ombro abaixo como uma índia faz aborto.

Ananda veio ciscar em meu terreno faz hoje uns três meses. A principio achei que tivesse ficado enrabichada pelo moreno alto que eu tenho em casa. Eu, dissimulada, não deixei que ela soubesse que eu sabia quem era quando veio me pedir um copo de água. O sol estava quente e ela estava com sede. E sua abordagem foi serena, desinteressada.

Ela me perguntou se tinha filhos, se era casada. Respondi que era casada, mas que não tinha filhos. Ela respondeu que também não, não havia tido a sorte de ter um filho vivo. Acreditava que Deus não a queria para a maternidade. Restava-lhe a faculdade de fazer o bem para os outros, através de rezas fortes.

Emendou que, se precisasse de umas rezas de cura, de segura-marido, de pronto estabelecimento de um parente ou amigo... era só procurá-la. Eu fingi não saber onde morava, quando traçou a distância entre a sua casa e a minha. E pediu um outro copo de água. Eu lhe dei a água.

Resmunguei para dentro, de forma a que ela não me ouvisse, “rezas fortes... é macumba, sim!...” E não a convidei para entrar. A feiticeira aparentou contrariedade porque não a convidei para entrar em casa, mas serenou com a visão bonita do céu vermelho no horizonte ao cair da noite. Tinha que ir embora.

Eis que (eu já sabia) essa arara tinha um rapazola de dezesseis anos à sua espera em casa. Tinha que voltar para casa a tempo de lhe dar o que comer. Apenas agradeceu-me a água e disse que seguia andando. Tentou engatar um “boa noite, comadre” mas percebeu que não seria bem recebida – então despediu-se com um “até mais ver”.

Isso que conto hoje vem do que ouvia-se na rua e, principalmente, da maior fofoqueira da área, minha vizinha dona Regininha. Dizem que (jurava ser verdade a vizinha) Ananda fez feitiço para o rapazola deixar a casa e sua mãe doente. À época, toda sua família protestou.

O tio foi falar com a bruxa, dizem que jogou-se no chão, fez muitas cenas. A mãe, que se encontrava impedida de andar, entrevada em uma cadeira de rodas, foi carregada no colo até a casa de Ananda. Ela suplicou para que o deixasse ir, que dependia dele para as refeições e para receber o cheque do auxílio no banco.

O que dizem é que ela pouco falou. Ficou da janela da frente da casa observando toda a confusão, esperando o momento em que iria falar para todos. Ia esperando aos poucos a hora em que se reunisse o maior número de pessoas, para fazer seu pronunciamento. E não tardou para ter três dezenas de moradores presentes em frente à casa.

Ananda, a bruxa, primeiro fez sinal com a mão para que o adolescente entrasse em casa e não saísse de lá. Logo depois, começou a falar para a pequena multidão: Uma grande praga estava por vir, e muitas vidas seriam ceifadas. Essa era a punição ao modo de vida judicioso das pessoas daquele lugar. “Viver, mas não julgar” era seu mandamento.

Ouviu-se na multidão, “bruxa!”, “meretriz do diabo!” “deita-se com o demo!” e, de fato, não se esperava nada que não fosse do mal, cataclísmico, da boca da tal mulher. Uma mulher macumbeira, é o que ela era. Uma mulher do mal ela era e uma admoestação sua não poderia ter valor. E ela repetiu, mais uma vez, “viver, mas não julgar”.

Eu, diante disso que me contaram, fiquei é claro do lado do povo, que ao que parece começou a se dispersar aos poucos depois do pronunciamento da mulher do demo. Mas nesse mês de março em nossas vidas se falava na televisão de uma doença nova que surgia e que tínhamos que nos proteger com panos no rosto, sobre a boca e o nariz.

Nunca vou saber ao certo se foi uma grande coincidência com Ananda ou se ela julgava os fatos por aquilo que começava a aparecer no noticiário. Em meados do mês já se falava “pandemia” e realmente a doença era tudo o que falava a feiticeira e algo mais. Aquele dia não foi linchada por magia negra, mas esteve muito perto disso.