Será que ele é? (abril de 2020)

Uma repartição pública geralmente guarda muitos segredos. Há aqueles flertes meio fora de hora, funcionários que se demoram um pouco demais no momento do cafezinho, há indícios de que o chefe de seção tem seus prediletos, e até abordagens que beiram o assédio moral. Mas o que se vê não se comenta jamais: este parecia ser o lema ali.

Acho que nossos dias, não fossem esses episódios, talvez fossem monótonos demais. Estámos sempre de olhos abertos para observar o que acontece na mesa ao lado e em toda a sala onde se aglomeram em computadores os funcionários da seção F. Praticamente nada passa despercebido naquele lugar.

E agora tem esse vírus de quem falam na televisão, ninguém sabe se vai continuar trabalhando ali, dizem que é muito contagioso e que pode levar mesmo à morte. Acompanhamos atentamente o que dizem os noticiários e os jornais com preocupação e com medo de ser contagiado e morrer.

O papo é que mais dia menos dia vamos ter de fazer trabalho em casa. O vírus é tão perigoso que não se pode dar mole. Mas até hoje, em abril, tendo sido decretado lockdown na cidade desde março, ainda e apesar disso seguimos trabalhando normalmente já faz um mês. Mas estamos no limite.

É questão de dias, nós acreditamos, para que entremos também no lockdown. Trabalho só é permitido o essencial, e portanto, sabendo que em uma repartição pública não se lida diariamente com o essencial, como em uma farmácia ou supermercado, iremos fechar as portas e trabalharemos desde casa.

Mas todas essas elocubrações são produzidas em silêncio, ninguém ousa falar claramente sobre isso. Nada de conversas paralelas. E enquanto isso, cabe aos olhos curiosos, cabe a todos os olhos da seção, observar e questionar: que é esse vírus e quem poderia transmití-lo para nós?

Será que ele é (positivo)? É a pergunta mais elaborada nas mentes de nós todos. Saber se o colega de trabalho é portador do vírus mortal é uma curiosidade justificadíssima. E neste dia, quinta-feira de abril de 2020, eu observo o Olívares. Ele tosse meio de lado, repedidamente. E espirra muito.

Tudo bem que há a gripe, há a influenza, há a dengue, e uma dezena de explicações para a tosse pigarreada do colega que aliás é fumante. Mas a princípio ele é alvo de nossas suspeitas. Será que é positivo? É positivo para o vírus mortal? Só não usa máscaras, como a maioria de nós, porque isso ainda não é obrigatório. E será que ele é?

E então eis o Olívares como suspeito número um de estar doente desse tal de coronavírus. Veio da China à Itália e de lá, ao Brasil. Para dar uma volta aqui dentro da repartição pública, é uma possibilidade. Não fui o único que percebeu Olívares expelindo seu gás pigarreado talvez por conta do cigarro, talvez por conta de doença.

As pessoas consideradas doentes, as positivadas, devem colocar-se em quarentena. É o que sabemos hoje. Será que ele é? Soube na boca pequena, pelo telefone e fora do trabalho, que passou o carnaval em Porto Seguro. Isso em fevereiro. Não faz sentido que no início de abril ele venha a desenvolver a doença.

Olívares não é o nosso homem. Seria preconceito acreditar que ele, logo ele, é portador do vírus. É verdade que o tempo que seguiu seu retorno de Trancoso foi grande demais para que ele tivesse enfrentado agora uma luta contra a doença. Mas é claro que pode ter pegado o vírus nas ruas da nosso cidade, nada impede que isso possa ter ocorrido.

Minha cabeça voou a mil. As conjecturas foram tantas e o medo tomou cada centímetro de minha cabeça. Será que ele é? Será que iria eu contrair um vírus desse camarada de quem não era muito próximo mas que retirei em um amigo X anos atrás e troquei um abraço com ele na época? Somos amigos nas leis do nosso ofício apenas!

Acontece que, se ele tem mesmo o coronavírus, não há amizade que justifique proximidade com o colega. Eu até gosto dele, acho que sabe vestir-se impecavelmente bem. É um exemplo de decoro, em todos os sentidos. E também é muito mais velho que eu e que metade da seção F. Será que ele é?

Pensei em interpela-lo a respeito de seu resfriado, de sua tosse pigarrenta e espirros. Mas desisti porque ninguém no recinto parecia me apoiar nesse intento. Não seria assim então que resolveríamos o caso de Olívares. Percebi que, paulatinamente, mais pessoas apareciam para trabalhar com máscaras cobrindo o rosto. Eram os tempos chegando.

Certo, eu sei que não era comportamento único do meu lugar de trabalho. Os meios de comunicação cada vez mais apontavam o uso de máscaras e distanciamento social como antídotos contra o vírus. No dia seguinte ao que estou escrevendo, eu também tratei de comprar máscaras e atentar para o distanciamento social de 1,5 metros.

Há também a necessidade, ao que tudo indica, de lavar constantemente as mãos e/ou utilizar álcool em gel. É para matar o vírus nas mãos vindo de onde ele vier, de qualquer superfície física. Comprei um litro. Mas nada impediu minha imaginação de apontar que meu colega de trabalho é positivo. Que perigo e eu pensava: será que ele é?

Hoje, no final do expediente, fomos visitados por superiores que questionaram se estávamos acompanhando as notícias. Receberam um uníssono sim, estávamos. Pois foram sensatamente ao assunto: teríamos que parar o trabalho, pois não conseguiríamos enfrentar a disseminação desse vírus. Fecharíamos as portas e faríamos home office.

Olívares foi o único que se levantou e, pigarreando, perguntou sobre a vigência de nossa quarentena. A resposta foi um vácuo, pois ninguém sabia até quando. Talvez até junho e, pode ser que até setembro, não tenhamos resolvido o problema. Eu, que já não quero saber se o colega é, acatei nosso confinamento a começar no outro dia de manhã.