A bela Márcia (maio de 2020)

O mundo inteiro em marcha no terminal de ônibus. São sete horas da manhã e a garota desaparece no gigantesco terminal de ônibus de um local do Brasil. As filas estão enormes, as pessoas se apertando, e o distanciamento social como preconizado pelas autoridades de saúde é difícil de cumprir.

Apesar de tudo usava máscara. E tinha nojo de todos os lugares onde tocava. Quando podia, fazia uso de álcool gel para limpar os dedos das mãos. Eram os tempos de pandemia expondo as necessidades e as fragilidades de cada um. Um ônibus lotado, cheio de gente em pé, contaminaria quantas pessoas?

Talvez não a pele era escura, mas a excessivamente magra compleição física de Márcia dava a ela ar de destaque na multidão. Tinha necessidade de trabalhar de doméstica do outro lado da linha de ônibus. E dependia do dinheiro para botar comida dentro da boca de dois filhos. Não tinha um marido nem ninguém mais para ajudá-la nisso.

Entrou no final da fila do ônibus quando havia quarenta pessoas à sua frente. Sempre pensava em evitar o primeiro transporte e esperar por outro, mas não podia fazê-lo, pois caso fizesse chegaria atrasada na casa do patrão. E Márcia se arriscava mais um dia a contrair a covid-19 por uma caixa de leite e outros alimentos para a prole.

A menina esguia de vinte anos de idade entrou finalmente no ônibus. Não conseguiu sentar. Ficou de pé com a bolsa pequena dependurada no ombro e o com o olhar curioso de um transeunte que reparava em sua magreza. Nenhum cavalheiro para ceder o lugar e permitir que ela pudesse se sentar.

Lembrou do que o filho mais velho, de 8 anos, lhe dissera no dia anterior: “Os biscoitos vêm da lua?” Ao que ela respondeu: “Sim, trago da lua um pacote no fim-de-semana que vem.” A filha menor, de quatro, assegurou à mãe que queria biscoitos brancos como a lua, de baunilha. Márcia prometeu satisfazer os desejos dos dois.

Pensou: “vou ter que pedir adiantado. Preciso de um vale para comprar biscoitos da lua.” E como detestava ter de pedir dinheiro ao patrão fora de hora!... Mas faria esse sacrifício em nome dos dois meninos. Cogitou escrever em um pedaço de papel para anotar e não esquecer, mas desistiu de fazê-lo. Iria lembrar-se.

Um homem de banho tomado, de cabelo molhado, aproveitava os solavancos do ônibus para esfregar o corpo sobre Márcia. No começo não percebeu a intenção nas investidas do homem de uns trinta anos. Atribuía tudo ao acaso até que notou uma risadinha disfarçada, certamente maldosa do homem que queria gozar sobre a garota.

Correu até o fundo do ônibus, pedindo “por favor, dê licença, perdoe por favor.” A atitude do homem lhe dava asco, para mencionar tudo. Tinha vontade de vomitar. Mas pensou que agora que havia mudado de lugar se sentiria melhor. Respirou fundo e pensou em sua mãe, quase em prantos, no mesmo percurso vinte anos antes que ela.

Sua mãe fora empregada doméstica. Do mesmo jeito, mesmo em tempos sem pandemia, tinha que sacolejar muito uma boa parte do dia para chegar ao trabalho ou para retornar dele. Conversavam muito quando Márcia tinha seus dez anos de idade. A mãe não escondia a impossibilidade de lhe oferecer uma vida diferente da sua.

Mas era criativa e lhe ensinava a sonhar. Sonhando, a falta de comida que acometia a família não tocava lá no fundo dos estômagos vazios – de Márcia e das outras três irmãs. O que aprendeu com a mãe procurou incentivar nos próprios filhos. Assim, podiam sonhar que os biscoitos vinham da lua.

De outra feita, as crianças acreditavam que o feijão vinha da mesma árvore dos chocolates. Márcia não corrigia seus filhos. Era melhor para todos que soubessem sonhar sobre a comida. Pois às vezes ela podia faltar e era sempre mais fácil se desculpar se utilizando da linguagem das crianças.

Sua mãe ensinava que o arroz era mingau de nuvem. Aquilo bastava para que Márcia e as irmãs ficassem de olho nas nuvens um dia inteiro quando a panela estava vazia. “Será que vamos ter arroz hoje, mamãe?” E ela respondia “tudo depende da vontade do tempo. Talvez amanhã.”

E o ônibus de Márcia chacoalhava. Uma senhora sentada à sua frente levantou-se e deu o sinal de parada. Foi aí que surgiu sua oportunidade de sentar. E, rente à janela escancarada, sentou-se e procurou relaxar da cabeça aos pés. Como era gostoso sentir o vento a bater no rosto.

Algumas caras vizinhas, que também estavam de olho em um lugar para sentar, olhavam de cara feia para Márcia. Mas a vez era dela, ela estava mais próxima da poltrona vacante. E procurou não se preocupar mais com isso. Estava perto do final da viagem, mais vinte minutos sentada e era tudo.

Nos tempos de sua mãe não havia terminal de ônibus. Ela tomava três ônibus para chegar ao trabalho. Um a mais que Márcia. E como era bom o progresso! Adorava o progresso que permitia chegar ao final da viagem em pouco mais de uma hora. Aproveitou o ar abundante para respirar fundo.

Pela janela, pôde avistar que estava no final da viagem. Outros cinco minutos e estaria lá. Apertou a bolsa nos seios que praticamente não tinha e empertigou-se para trás. Lembrou-se de sua mãe e novamente fez comparações entre as viagens que ela fazia para o trabalho e as suas. Sua mãe faleceu sem conhecer os grandes terminais de ônibus.

Passados alguns minutos levantou-se e deu o sinal de parada. O carro ainda estava lotado. Caminhou na ponta dos pés para não pisar nos pés de ninguém e se deslocou em meio à multidão até a porta. Fez um pedido de desculpas para cada passo dado errado, alcançou as escadas da porta de saída que encontrava-se aberta, e desceu.