O aniversário de Álvaro (junho de 2020)

Não tinha vícios. Não fumava nem bebia. Mas não tinha nenhum amigo também. Álvaro não se considerava infeliz, mas tampouco era um cara feliz. Assim como não tinha amigos, já não mantinha contato com nenhum familiar. Os pais faleceram, e dos dois irmãos e uma irmã que tinha não tinha mais notícia.

Essa tarde em especial estava ligeiramente tocado. Fazia cinquenta anos de idade. Já sabia que ninguém iria telefonar, nenhuma visita. Mas os cinquenta anos são de tocar lá dentro. E quem sabe uma visita não tornaria a vida um pouco mais suportável? É uma idade perversa: descortina o caminho para a morte, quem sabe aos oitenta? Ou noventa?

E caminhava sob as castanheiras, por volta das sete horas da noite de uma sexta-feira. Os carros passavam lentamente por ele, como se desejassem ver o aniversariante – um pensamento que lhe ocorreu enquanto se deslocava do trabalho para casa. Não quis transporte público aquele dia nem o velho carro na garagem: preferiu ir andando.

Muito do que via corroborava sua sensação de festança de aniversário. As moças muito bem vestidas, adornadas de máscaras sanitárias decoradas com purpurina, pareciam sorrir para ele através do pano. Os carros de aplicativo vinham cheios a seus destinos. A pracinha central do bairro repleta de gente para comer e beber. Começava a noite.

Uma hora de caminhada até sua casa. Seu apartamento não é o que se convenciona chamar de plenamente funcional: não tinha elevador. Álvaro tinha de subir os três vãos de escada a pé. Mas em compensação se localizava a uma quadra da praia e, vez ou outra, o homem empreendia uma caminhada pela areia, rente ao mar.

Porém, estava ainda longe do lar. Caminhava pelas alamedas arborizadas da entrada do bairro, onde estava a pracinha com as suas lanchonetes food truck. As pessoas que estavam afoitas para chegar em casa para a noite da sexta-feira eram responsáveis pelo trânsito pesado. Alguns motoristas utilizavam a busina para sair do caos, mas em vão.

As luzes dos letreiros das lojas deixavam tudo ainda mais colorido. A verdadeira sensação de Álvaro era que elas o saudavam pelo dia especial de seu aniversário. As businas dos carros também pareciam chamar a atenção para o dia dele. Os ônibus passavam lotados, com pessoas sem face, mascaradas, dependuradas feito peru de natal.

Mas por trás de suas máscaras personalizadas sorriam para ele em saudação ao dia de aniversário. Ele procurava não olhar de volta, porque temia constatar que estava tendo um surto psicótico. Contudo, não era o caso de alucinação, mas de pura sensibilidade. Neste dia em especial, pelos cinquenta anos, estava sensibilizado.

Resolveu gastar umas pratinhas na pracinha. Puxou uma cadeira e pediu um churrasquinho. Decidiu ficar ali mais um pouquinho para observar o movimento. Essa noite tinha um brilho incomum. Era a lua que surgira cheia por trás dos edifícios e dava uma cor de prata a tudo que se movia na rua.

As pessoas com mais de trinta eram maioria no lugar. Haviam vindo direto do trabalho para a pracinha e começava assim sua noite. Dali combinavam com suas turmas de se encontrar mais tarde, à noite, depois de tomada uma chuveirada e depois da muda das roupas do trabalho por algo mais apropriado.

Seus olhos estarreceram ao encontrar alguém que parecia estar em situação igual à sua: uma senhora provavelmente de sua idade, sozinha em uma mesa para quatro pessoas. Exatamente igual ao seu caso. Ela tinha os olhos perdidos nas luzes da noite da mesma forma que ele.

Pensou em abordá-la. Não. Imagina o vexame se aquela senhora lhe dissesse que estava a espera de amigos? Que vexame! Cogitou acenar para ela, sei lá, fazer algum sinal amistoso que suscitasse sua atenção e não a ofendesse? Não. É só imaginar o tamanho da ofensa que corria o risco de despertar na senhora.

Desviou os olhos da mulher voltando sua atenção para um bebê largado no chão, sobre a grama, cercado do que só podia ser seu pai e sua mãe. A criança estava suja, a face coberta de uma mistura de comida e meleca, e a boca coberta de terra. Que tipo de pais eram estes que deixavam seu bebê imundo e solto na grama?

Um rapaz magro o encarava. Estava enconstado na pequena lanchonete ao lado, e comia um hamburguer. Tomava uma coca-cola de garrafinha no canudinho, esboçando um sorriso (sem máscaras) para Álvaro. Ele desviou o olhar prontamente. O flerte não era seu talento mais forte. E a ausência de máscara, ainda que justificada, lhe dava calafrios.

Pôs o seu olhar a se perder nos carros que circulavam a pracinha. Pessoas de máscaras em geral, com os olhos curiosos contemplando as lanchonetes de food truck. Ao se perder com o olhar sobre os carros, acabou por fitar o vazio. Imaginou um buraco no universo acima de sua cabeça para onde ele iria algum dia. Mas talvez hoje não.

O bebê começou a chorar, provavelmente por falta de atenção. Reclamava a presença de seus progenitores, que por sua vez estavam interessados demais em uma conversa com o vizinho de mesa. E o menino chorava e chorava sem que alguém lhe desse atenção, o que causou repulsa em Álvaro. Pagou o churrasquinho e levantou-se.

Empreendeu uma nova caminhada até sua casa. Em vinte minutos estava em frente ao edifício. Primeiro abriu o portão da rua, e depois o portão interno. Não havia porteiro naquele prédio de apartamentos. Subiu com destreza os três andares de escada até chegar à sua porta.

Nenhum recado na secretária eletrônica. Realmente ninguém lembrara do dia de seu aniversário. O gato Baltazar logo se enroscou em sua perna e ele levantou o bichano à altura de seu ombro: “E então talvez você lembrou-se do meu aniversário, hein?” Pôs o bicho no chão e lhe ofereceu uma xícara de leite. Depois foi ligar a televisão.