Hospital (julho de 2020)

Quinto mês da pandemia. Um julho atípico em qualquer lugar do nosso país. Falo com conhecimento no assunto: sou médico intensivista e trabalho em um grande hospital público. As pessoas comuns não fazem ideia do que uma doença é capaz de fazer ao ser humano. Quantas vidas entram aqui, quantas vidas não saem com vida.

Nenhuma segunda feira de julho teria sido testemunha do que eu presenciava ali. Em um ano comum, esperávamos algum acidente de carro grave que pudesse mobilizar todo o pronto socorro e nos fizesse suar um pouco para ver o paciente lutar pela vida. Esse seria nosso cenário normal de expectativas.

Mas 2020 tem sido um ano incomum, e incomum em vários sentidos: lá atrás em março acreditávamos que a luta contra esse inimigo incomum demoraria até no máximo junho. A partir daí teríamos já uma medicação definida e, quem sabe, uma vacina. Não imaginávamos que teríamos que lutar para que esse inimigo terrível não nos devorasse.

Pois estamos em julho e os números de contaminados e de mortes devidas ao vírus Covid-19 aumenta de mês a mês, de segunda a segunda-feira. E não estamos preparados para enfrentá-lo. Falta equipamentos para nos proteger, faltam leitos, falta até mesmo fé para vencer o vírus – tamanho o estrago que ele promove em nós da área da saúde.

Temos que aprender a acreditar em sorte. Pois sabemos que, mesmo se tudo correr bem em relação às ferramentas de trabalho e ao potencial humano, alguns pacientes que acreditamos que vão sobreviver morrem; enquanto outros que chegam em estado deplorável conseguem dar a volta por cima e sobreviver.

Pois então, quem morre e quem vai viver para contar a história? Nós não sabemos precisamente bem. Pois, nessa segunda-feira de julho deu entrada no pronto-socorro do hospital, após triagem enviada ao setor de tratamento de Covid-19, um senhor já de idade, de setenta e cinco anos de idade, muito mal.

Este senhor tinha o pulmão comprometido, tendo muita dificuldade para respirar. Estava acompanhado pela filha, que estava aflita pelas condições de saúde de seu pai. Procurei ser rápido: “a moça espera lá fora, vamos cuidar do seu pai e a mantemos informada.” Ela entendeu e nos deixou a sós.

Eu acenei para um enfermeiro e ele prontamente trouxe até nós uma maca. Deitamos o paciente sobre ela e corremos para a UTI. Era caso de intubação, sem sombra de dúvida. Se quiséssemos mantê-lo vivo, dependeríamos de respiração mecânica. E precisaríamos agir rapidamente.

A enfermeira da UTI veio até nós para falar que, devido a um óbito recente, havia vaga no setor. Nem perdemos tempo para perguntar qual o leito. Encontraríamos nós mesmos o lugar. Assim sendo, empurramos a maca até o leito vazio. Em razão de uma tragédia, o leito de tratamento intensivo já estava pronto para o paciente que entrava.

Com a ajuda de outro enfermeiro, nós deitamos o senhor no leito e o intubamos. Daí, o de praxe: fizemos nossa higiene, lavando as mãos, e trocamos a roupa descartável. Antes de ir para o saguão de entrada da unidade, aproveitei para checar os outros dezenove leitos da UTI onde estavam meus pacientes de Covid-19.

Aproximadamente a metade, intubada, parecia estar respondendo ao tratamento. Os danos, no pulmão sobretudo, estavam se curando como desejávamos. Mas o caso dos restantes não era o mesmo. Infelizmente, metade dos pacientes de UTI evoluía a óbito, enquanto a outra metade (sem que entendamos o porquê) sobrevivia.

Em um momento de descanso, fui de encontro à moça que trouxera o pai e que esperava lá de fora pela sorte de revê-lo com vida. Estranhei que uma mocinha tão nova tivesse um pai de setenta e cinco anos de idade. Ela não teria mais que dezesseis anos de idade. Fui até ela.

Era muito boa de conversa. Foi logo me contando que perdera a mãe muito nova, e que lhe restara apenas o padrasto – este que ela trouxera para o hospital. Ele era tudo o que tinha em sua vida. Muito triste, perguntou-me quais eram as chances. Eu de pronto não compreendi. Mas, é claro, quais as chances de sobrevivência?

Apreendi em minha profissão médica a não ser totalmente sincero. Não seria eu a retirar todas as esperanças dessa jovem mulher. Preferi demover sua ideia fixa de morte, por mais lúcida que realmente fosse. Eu então contei para ela que muitos pacientes que ali chegam saem vivos do hospital.

Muito sagaz, ela me pressionou contra a parede. Ouvira que pacientes idosos têm menor chance de sobrevivência. Pensei: “se sabe disso, por que faz isso comigo, um pobre médico que apenas não quer fazê-la sofrer?” Mas também eu não mentiria e disse: “Há algo como sorte nesse espaço de tratamento. Alguns senhores idosos sobrevivem.”

Nesse instante entrou no pátio uma ambulância. Eu fiquei atento. Felizmente era um caso de trauma. Atropelamento. Poderia ficar mais alguns minutos com a jovenzinha que poderia ser uma de minhas sobrinhas. Tinha a graciosidade que só mesmo o dom da pouca idade é capaz de proporcionar em uma mulher.

Segurei sua mão e lhe prometi que faria o que fosse necessário para salvar o seu padrasto. Eu a adverti sobre todos os cuidados que teria que ter para não adoecer e não transmitir a doença dele para outras pessoas. Mas ela estava bem informada. Usava máscara o tempo todo e se higienizava. Recado dado, voltei para dentro do hospital.

Passaram-se três semanas e o paciente infelizmente veio a óbito. Todas as mortes mexem comigo, mas essa em especial tocou-me intensamente. Lembrei no momento em que vi os olhos úmidos de sua filha. Eu não fui capaz de informar a garota. Pedi a alguém da portaria que ficou incumbido de fazer isso.