Consciência (novembro de 2020)

Novembro é dia da consciência negra. Há os idiotas que afirmam que deveria também haver um dia para a consciência branca, mas esses são casos perdidos. Observo a rua lá embaixo e vejo o como meu país é negro. Há uma grande maioria de pretos que caminham na minha rua um pouco depois do raiar do sol de um novo dia.

Hoje não é apenas um novo dia, mas o começo da semana. Segunda-feira é dia de trabalho para todos nós. Eu escolhi um trabalho que me permite em tempos de pandemia como estes trabalhar a partir de casa. Faço home office em meu trabalho de gerente de vendas de uma grande multinacional.

Talvez ninguém pense em mim como um homem preto que ocupa o cargo de gerente em uma importante empresa. E que eu moro em um bairro prestigiado onde ver um outro preto no elevador é coisa rara. Ou será que pensam? Será que comentam sobre isso em casa com suas esposas? Hummmm... creio que sim!

Não dormi bem esta noite porque penso muito na morte. Desde o começo dessa pandemia perdi um tio muito querido. Ele era a própria afirmação da vida. Divertido, consciente quanto a sua posição de homem preto, carinhoso com todas as crianças. De fato, as crianças – sobrinhos muitas vezes – o adoravam.

Tio Olavo tinha sempre uma bala ou um pirulito no bolso para agradá-las. As crianças se reuniam a sua volta fazendo festa. Pois ele foi embora em menos de um mês. No começo, gripe forte e fraquesa no corpo. Mais tarde veio a dificuldade de respirar e a esta fase ele sucumbiu e morreu.

Começo hoje meu trabalho às nove em ponto. São seis e meia ainda e, assim, tenho duas horas e meia para iniciar o computador. Gosto do que faço, por isso me dedico ao máximo a meu trabalho. Já faz mais de seis meses que dou conta de tudo desde o meu computador, montado perto de uma janela para que eu não perca o que se passa na rua.

E da minha janela vejo muito do que se passa na rua. Gosto de ver, sobretudo, os batedores de carteira. Acredite, é possível vê-los trabalhando lá embaixo, na esquina em meio à multidão desde o início da manhã até tarde da noite. E dizem que moro em lugar privilegiado. Privilégio é observar os bandidos lá embaixo.

Mas choro quando vejo uma senhora idosa, imagino já viúva, cuja carteira de dinheiro é subtraída por algum desses criminosos. Talvez lhes subtraiam a pensão mensal, dinheiro de aluguel e para as despesas de comida. Já presenciei dois episódios como este daqui da janela de meu apartamento.

Quando me perco na tela de computador, alguma ação na rua lá embaixo me arranca a atenção para lá. O mais comum mesmo são os criminosos que roubam as carteiras de transeuntes desavisados. Atravessam a rua na esquina (eu moro na esquina) com a multidão e zas-trás! Um esperto lhe furta o dinheirinho talvez do mês, talvez da semana.

Mais tarde, tenho uma centena de planilhas para examinar. É algo metódico, repetido umas mil vezes. Contudo, o que ocorre na rua vai me retirar a atenção do computador por minutos umas três ou quatro vezes por dia. Já houve dia sem roubalheira, mas esses dias são exceção. Em geral o que há é a vitória dos espertos.

Eu reflito muito nesses momentos: “será que todos os criminosos que vejo são pretos?” Quando consigo identificar um ladrão, o que não é fácil, é às vezes preto e às vezes não. Mas concluo que a pobreza extrema do nosso país dita a cor dos batedores de carteira e ladrões de velhinhas. E essa conta quem paga, sensivelmente, são os pretos.

Nosso país foi fundado sob a sombra de séculos de escravidão; ao final de que não houve qualquer reparação pela pobreza extrema ligada à cor escura da pele desses antepassados. Os assaltantes lá embaixo são é morenos-claros, são morenos-escuros, mas são em sua maioria morenos. São pretos claros ou escuros em quase todas as vezes.

Nesse instante observo a multidão de pessoas indo ao trabalho mas não vejo ninguém vilipendiando ninguém. E não é pelo horário, porque já vi muita coisa acontecer a essa hora da manhã. Esses dias, os criminosos usam até máscaras cirúrgicas. Pude presenciar isso mais de uma vez. Para confundir-se na multidão, usam máscaras descartáveis!

Poderiam me perguntar: “onde está a polícia agora?” Crio um adendo para lembrar que nossa polícia (que não é criminosa) também tem a pele mais escura. Nos cargos distantes do comando na nossa sociedade, cargos sem prestígio, lá você encontra os pretos – mais morenos, menos morenos.

Já vi policiais aqui nessa esquina, e não foi em poucas ocasiões. Mas são poucos e não dão conta do que ocorre lá embaixo. Quando há a presença da polícia, os criminosos ficam quietos, abstêm-se de qualquer ato. Aí a polícia se cansa de esperar por algo que não acontece e vão embora.

São oito horas e trinta minutos da manhã dessa segunda feira e já tomei meu expresso italiano e comi croissants. Estou me preparando para o início das atividades de trabalho. Lá embaixo não vejo nenhum problema. Não há bandido, não há polícia. Sei que não tardará a ocorrer algo ou, talvez amanhã?

Olho para a minha mão, e ela é preta. Mas elas são ágeis só no teclado do computador. O preto que trabalha atrás da tela deste computador não é o mesmo que assalta os trabalhadores lá embaixo. Tive bons professores talvez, uma mãe forte e amorosa, houve quem me nutrisse e me encaminhasse na vida. É essa a receita?

Trago essa reflexão no mês em que se comemora o dia da consciência negra. Já há muito que é dito, mas duvido que haja muito que é ouvido. Se for contar nos dedos, tenho talvez dois amigos de verdade que não são pretos. Os outros oito são todos pretos claros e pretos escuros. E é assim que encerro essa reflexão.