A vacina (março de 2021)

É março da janela do meu apartamento e eu vejo uma fila de idosos para a vacinação no posto de saúde do outro lado da rua. Impor-se frente ao coronavírus é um ato de resistência. Até que chegue a nossa vez. Sozinhos ou acompanhados são muitos em fila indiana e hoje vejo só aqueles que têm mais de oitenta anos de idade na fila.

Eu, que tenho perto de quarenta anos, ainda vou ter que resistir um longo período de tempo até que chegue a minha vez. Minhas pequenas filhas Dora e Flora me perguntam com frequência: “Papai, quando é que nós vamos vacinar?” Eu respondo que não haverá necessidade para elas, que são muito novas. Vacina é para os mais velhos.

Elas respiram com alívio e não me perguntam mais até que vejam alguma campanha de vacinação na televisão. Eu temo por mim e consequentemente por minhas filhas, porque desde que minha esposa morreu em um acidente de carro há dois anos, tudo o que têm por elas sou eu. A vida delas depende de minha saúde.

A vacinação começou atrasada e não há vacinas o suficiente para garantir uma imunização rápida de toda a população. Posso esperar, na melhor das hipóteses, ser vacinado no final do ano. Mas minhas filhas dependem tanto de mim que não posso fraquejar até que cheguem vacinas para mim.

Tomamos em casa todos os cuidados que dizem a OMS: o uso de máscaras, lavar sempre a mão e utilizar o álcool em gel, mantendo o distanciamento social de um metro e meio, no mínimo. Mas sempre que penso nisso penso que nada disso pode ser o suficiente para cessar a transmissão da doença.

Apenas a vacinação pode garantir que uma pessoa não desenvolvam os casos mais graves da doença. O covid-19 pode contaminar, mas o máximo que posso ter são sintomas médios, o que garantiria ficar em casa sem necessidade de internação, intubação, uso de uma UTI. Mas, quanto tempo vai tomar até que a vacina chegue aqui?

Este é um sábado quase comum. Seria comum, não fosse a aglomeração em frente ao posto de saúde. Também seria comum se houvesse movimento de carros na rua e pessoas atravessando nas faixas de pedestres. A minha porção da cidade estava quase que completamente vazia.

Estamos vivendo um lockdown do modo como foi decretado pelo governador. Nesse final de semana, nem os restaurantes abrem para o almoço. Tenho que confiar nos supermercados para garantir as refeições dentro de casa. As crianças estão incomodadas com o fato de não poderem ir brincar lá fora, mas entendem e se calam.

Avisei às duas que precisava ir ao supermercado para comprar comida e fazer para elas, e boom! As duas queriam ir comigo até lá. Disse ok, mas que as duas teriam que se aprontar para o passeio no supermercado. Máscaras e frasquinho de álcool gel. Em menos de dez minutos já estavam prontas.

Dobramos a esquina e lá estava o supermercado. Muito vazio para um horário como este de sábado pela manhã. Dora queria um carrinho só para ela. Tem cinco anos e é muito mandona. Já Flora, a mais velha, de sete anos, costuma conversar comigo, não faz pirraça como a irmã para ter o que quer.

Concordamos que Dora podia ir no carrinho, afinal íamos comprar pouca coisa, compraríamos o suficiente para o strogonoff do almoço. À noite, se ficassem obedientes, comeríamos pizza. Pois fomos primeiro ao filé mignon de preço salgadíssimo. Compramos um pedaço de quilo e meio.

Depois fomos ao creme de leite, molho inglês, amido de milho, cogumelos, palmito, ketchup e batata palha. Incrível como nessa pandemia os donos dos supermercados têm enriquecido. Os preços estão pela hora da morte. Mas comprei os ingredientes assim mesmo, já que strogonoff era uma das únicas coisas que sabia preparar.

Passamos as mercadorias no caixa e tomei Dora do carrinho aos meus braços. Como a menina estava pesada! Para passar o cartão deixei Dora junto a Flora, porque não conseguiria manusear a carteira com Dora encima de mim. Flora saiu na frente de mãos dadas com a irmã. Caminhamos os três juntos, cada um com algo nas mãos.

Uma pequena caminhada de regresso e estávamos de volta ao apartamento. As meninas estavam cançadas. Teríamos de dar início à preparação do almoço, já eram onze horas, então tínhamos de desembalar e higienizar todas as mercadorias; as boas maneiras para se evitar a contaminação pelo vírus!

Permiti que as duas me ajudassem, por mais que soubesse que iriam me atrapalhar, preocupado que estava de que pudessem se machucar, se queimar, na cozinha. Mas que pai de coração mole sou eu! Pedi-lhes que primeiro se sentassem nas cadeiras da mesa da cozinha, e que observassem o que eu estava fazendo.

Nada de brincar com facas ou chegar perto do fogão. Pedi que abrissem as caixinhas de creme de leite e a pequena garrafa de molho-inglês. Também podiam abrir a caixa de amido de milho. As duas acharam-se superimportantes. Mais tarde iria delegar a tarefa de abrirem a garrafa pet de refrigerante.

Dora me desconcertou por fazer uma pergunta que não se encaixava no que estávamos fazendo. Era uma pergunta que não dizia respeito aos afazeres da cozinha. Queria saber de mim: “por que tantos vovozinhos na fila do outro lado da rua? Eles estão mais doentes?” Tive que responder que estavam alí, na verdade, para não adoecerem.

Não sei se me entenderam perfeitamente em linguagem de gente grande, mas falei assim mesmo: “Os mais velhos que pegam o vírus têm maiores chances de desenvolver a doença, se comparado aos grupos de gente mais jovem como o papai. Por isso tomam a vacina primeiro, até chegar a vez do papai.” Mas parece que lhes restou alguma dúvida.