A jarra (abril de 2021)

Na minha casa tem uma jarra. É grande e bonita – toda de vidro e colorida – e fica na mesa da copa do meu apartamento. Foi presente de aniversário de um amigo meu que esteve na República Tcheca. Pois, essa manhã acordei e não avistei o meu enfeite caro. Acordei cedo, antes das oito horas da manhã deste sábado de abril, e não a vi.

Lembro-me de que era abril porque a temperatura do verão, quente e abafada, já havia ido embora. Sentia mesmo um frio durante a madrugada e por esse motivo fiquei rolando na cama até que finalmente despertasse – um pouco mais cedo que a chegada da empregada. É quando dei por falta da minha jarra e senti o vazio da prenda valiosa.

Moro sozinho com um gato de raça chinesa, Li Hua, a quem chamo de Senhor Xiao. É o verdadeiro dono do local e é um gato amoroso, peludo e de bigodes imensos. Não sei por que escolhi o tal nome para ele. Acredito que tenha sido pela sonoridade da palavra. Não sabia se foi o Senhor Xiao quem deu cabo da jarra, mas precisava descobrir.

Empreendi, com ele em meu colo, uma verdadeira varredura no apartamento. Em algum lugar ele haveria escondido os cacos de uma jarra grande, de quarenta centímetros de altura, possivelmente feita em pedacinhos ao cair da mesa ao chão. Fomos primeiro ao meu quarto, lugar onde passava a maior parte de sua vida no apartamento.

Deitei-me no chão para olhar embaixo da cama mas lá não estava nada. Depois fui procurar nos armários, retirei alguns sapatos, algumas peças de edredon, e nada. Abri as janelas para que entrasse a claridade e ventilasse o quarto dessa manhã fria. E o resultado foi nada.

Ainda restava procurar no banheiro da suíte e então empreendi a busca por lá. Fui direto ao chão. Deitei-me e tentei ver no buraco que fica entre a parede de azulejos e a banheira e o resultado foi um nada. Fui desistindo de acusar o bichano por que não seria tão inteligente para esconder tão meticulosamente o que sobrou de minha jarra.

Mesmo sem duvidar da inocência de Senhor Xiao, que quer dizer pequeno, e fui fazer uma busca na cozinha. Curvei meu corpo no chão e de quatro percorri os espaços ínfimos debaixo de todos os armários com a expectativa frustrada. Olhei até embaixo da geladeira e do fogão. Não encontrei nada. Comecei a desconfiar da empregada diarista.

Mas fui então ao quarto de despejo do apartamento. Lá encontrei alguns itens que julgavava desaparecidos havia muito tempo. Havia um equipamento de mergulho já velho, um snorkel, uma bola de vôlei meio vazia, e muitos papéis velhos misturados a jornais antigos. Mas não encontrei nada de minha jarra tcheka. Restava saber de Marta.

Marta era minha diarista, pessoa em quem confiava muito. Nunca senti que pudesse furtar algo, ou faltar com minha confiança de qualquer maneira. Era pessoa séria, dessas que a gente reza para encontrar, e por isso lhe pagava bem, mais que um salário mínimo, e com a carteira assinada.

Duas noites anteriores conversávamos, antes de ela ir para casa, sobre a vacinação da população. A vacina chegaria primeiro a ela, chegando aos sessenta, do que a mim com trinta anos de idade. Nós nos sentamos os dois em torno da jarra desaparecida. Naquela tarde tenho certeza de que nada aconteceu.

No dia de ontem, sexta-feira, pouco conversamos. Eu envolvido no meu home office de jornalista, tudo muito bagunçado no meu escritório improvisado na sala de som, ela apressada para ir embora. Pois nesse dia confuso, não pensei em jarra, não notei nada até dormir e acordar no dia de hoje para perceber que o objeto havia subido.

Trabalhei até tarde na sexta-feira, próximo da meia-noite. Comi um pão e um pedaço de torta gelada de frango que Marta deixara pronta para mim. Depois tentei assistir alguma coisa na televisão mas não consegui. O sono foi tomando conta de mim e desfaleci sobre a cama sem mesmo tirar a colcha.

Em minha cabeça, somente assuntos de trabalho. Uma pesquisa sobre os abusos nos planos de saúde, e uma resenha de colega para corrigir. Havia dado conta de metade de todo o trabalho, o que já era muito. Havia muita coisa para mim. Eu que sinto o medo de faltar trabalho, trabalhei até dobrar a coluna de cansaço.

E acordei neste sábado cambaleante de uma noite mal dormida para observar que minha jarra havia desaparecido. Em pouco tempo chegaria Marta, que me ajudaria a compreender como a jarra teria desaparecido da mesa da copa. Como presumo que ninguém mais entrara na casa, minha doce Marta daria notícias da jarra.

Pois essa manhã demorava a chegar. Eram oito e quinze e não estava ali. Aí dei-me conta de que quinze minutos de atraso não fazem alguém culpado de dar o sumiço na jarra da mesa. Teria que somar suas três conduções até chegar ao trabalho, e alguns dias ela realmente chegava com minutos de atraso.

Liguei a televisão e dei com o noticiário matinal. O caso de pessoas que furaram a fila da vacinação no Brasil, o que deu afastamento das pessoas envolvidas. Uma vergonha que isso ocorra durante um momento de grande gravidade como esse em que vivemos. Houve casos em São Paulo e Minas Gerais.

Ouvi o barulho da fechadura na porta principal do apartamento. Era ela que chegava com um embrulho que abraçava com dificuldade usando as duas mãos. A primeira vista pensei, “quebrou minha jarra e comprou outra para repor. Não vai dar certo, a minha veio de longe, da Boêmia.”

Ela olhou para mim como se adivinhasse meus pensamentos e lançou-me um ar de censura. Explicou que não avisou antes por conta do meu atabalhoamento no dia anterior, mas que levou a jarra para um profissional onde mora para dar uma limpeza na peça. Eu, contente, tive de admitir que a jarra estava mesmo muito suja.