Devagar com o andor que o santo é de barro

Zélia e seus sonhos. Queria tanto casar de véu e grinalda que, aos 57 anos, solteira, ainda permanecia em devaneios, como se o príncipe encantado fosse chegar montado em seu cavalo alado a qualquer momento. Tivera inúmeros relacionamentos, a maioria deles finalizado de forma nada convencional. Gastava o que tinha e o que não tinha em salões de beleza e costumava sondar todos os meios nos quais pudesse ter uma única chance de encontrar alguém que a preenchesse como mulher.

Seus pais já tinham morrido, sua única irmã não tinha muita afinidade com ela e lhe restara um tio bem velho, de nome Arthur, com o qual ela se abria e confidenciava as suas peripécias, sempre com muito bom humor. O tio ria, instigava as suas lembranças mas, ao mesmo tempo sempre falava “devagar com o andor que o santo pode ser de barro, como foram todos até aqui”. O tio sabia que era a sua ansiedade e, certamente, a sua inconsequência, que não a levara a atingir o seu objetivo. Não era feia, tinha estudo, um padrão mediano de vida e tagarelava como ninguém. Costumava frequentar até mesmo velórios de pessoas que mal conhecia na esperança de encontrar o seu príncipe encantado. Na sua cabeça, buscar locais vulneráveis à tristeza era bem mais recomendado do que festas e eventos diversos.

Certa vez resolveu procurar um Pai de Santo em Salvador em busca de auxílio. Lá, no Alto do Coqueirinho, na varanda que antecedia o terreiro, encontrou um feirense e, com pouco tempo de conversa, se apaixonou. Ele contou à ela que tinha perdido a mãe e que estava sozinho, uma vez que toda a sua família tinha migrado para Angola. Compadecida, após o atendimento, rumou com ele para Feira de Santana e por lá ficou cerca de um mês, o tempo que levou para descobrir que o tal feirense não tinha emprego regular e, quando era solicitado, servia de go go boy em uma danceteria. Desiludida retornou à Curitiba, limpou seu apartamento que havia sido deixado às moscas e, em contato com a irmã, revidou toda e qualquer argumentação de que fizera loucura, alegando que estava aposentada, que a vida era sua e que faria tudo o que pretendesse, sem depender de ninguém.

Em outra ocasião, em viagem a turismo à São Paulo, sentada em uma cantinha na Bela Vista, foi fisgada por um italiano alto, bonito e de bom papo. Não levou muito tempo para que o relacionamento, com somente cinco encontros, todos eles pagos por ela, lhe custasse as poucas economias que tinha. O tal italiano era foragido da polícia e, graças à sua estampa, conseguia ludibriar quem quer que fosse. Após a descoberta, Zélia tomou conhecimento de que ele havia esvaziado as economias da esposa de um famoso empresário paulistano. Coisa de novela.

Sem freio, continuou na sua caça ao tesouro, até que um dia foi chamada por sua irmã, com a triste notícia de que o tio Arthur havia partido, vítima de um infarto fulminante. Caiu em prantos, prevendo o que viria pela frente. Colocou um terninho preto, óculos preto e scarpins da mesma cor. Chamou um Uber e deslocou-se para o velório. Fez sua fervorosa oração agradecendo ao tio a paciência e amizade de tantos anos e, ao afastar-se do caixão, bateu em um homem trajando um terno azul escuro. Sentiu o seu perfume e, olhando-o fixamente, entendeu ser ele o homem da sua vida. O tio Arthur tinha razão ao dizer que ela, com calma, encontraria alguém quando menos esperasse. E, na sua cabeça encontrou. Sentou em uma fila de poltronas no velório e começou a articular a forma de abordagem. Foi quando percebeu que o caixão já estava sendo retirado, que o seu tio seria cremado e que a cerimônia não poderia passar de três horas em função dos protocolos da Covid-19.

O santo era de barro. Foi tomada por uma tristeza imensa pelas duas perdas.

Escrito para a Oficina "Provocações" - módulo 06 - Editora Pragmatha

Rosalva
Enviado por Rosalva em 21/08/2021
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