Ovos Estrelados

Ai meu pai do céu, é tarde, o sol já vai a pino, a roupa ainda está no varal, Joaquim vai ver e... Ah. Ele ainda dorme feito pedra. Levantar devagarzinho, sem muito barulho, recolher a roupa, esconder as panelas ainda sujas de ontem, fazer café. O cheiro do café toma conta de tudo, há de acordar o homem, mas agora ele já pode acordar.

- Bom dia, Joaquim, teve boa noite?

- Cadê o pão? Vou tomar café preto? Essa casa já não tá valendo nada mesmo, perdi o respeito.

Olha o pão aí, como pode não estar vendo o pão no cesto, se o cesto está na mesa, na frente dele?

- Joaquim, olha o pão no cesto...

- Isso lá é pão? É uma porcaria, uma lasca de árvore, um casco de bicho, pão é que não é. Que é da manteiga? Que é do leite? Como é, Zefa, quem eu tenho que matar pra conseguir meu pingado?

O pão foi feito ontem, mas ele mesmo disse que não estragasse farinha e ovo todo dia, sobrou tanto pão que eu esquentei no banho maria e tá até macio... não tá tão duro como ele tá dizendo. E o pingado não tá na caneca? Ô meu deus, eu tô ficando doida e não botei o leite quente na caneca, deixa eu ver... Não, olha aí o leite fervido, com nata grossa, dois dedos de café preto sem doce e o naco de rapadura no pratinho pra ele adoçar na boca que é melhor... E se não tiver? E se isso tudo tá só na minha cabeça, mas não tá de verdade ali na mesa?... Mas tá. Eu tô vendo.

- Joaquim... O leite com café tá na caneca, aí do lado do pão...

- E isso é leite? Achei que fosse água de lavar latrina. Que coisa mais rala, cadê a nata?

Eu tenho um pote de nata que tô guardando pra fazer sequilho, cadê, onde eu pus? Será que formou mais nata na panela? Se eu botar a ferver será que sobe nata, por que eu não acho o pote com as natas que eu tava guardando, não acho...

- Zefa, o que é que tu tá fuçando aí? Vai achar meu leite nas latas de farinha?

- Ô Joaquim, eu guardei aqui no armário um pote com nata pra fazer...

- Aquilo? Era nata ou era chamariz de rato? Eu vi uma coisa fedendo aí em cima e rebolei no mato. Era uma tigela branca, né? Foi alimentar as baratas no latão. Você ia me dar aquele veneno pra comer? Ia me matar envenenado, Zefa?

Veneno? Era não, era nata pra fazer biscoitinho, era tão limpinho, nunca envenenou ele, a tigela branca tinha tampa não ia chegar rato, e tava no armário de cima, tão protegido. Pronto o leite ferveu de novo, fez tanta nata que encheu uma concha, vou colocar no pingado dele... Ai, mas a caneca tá tão cheia, não cabe, vou derramar um dedinho de nada pra poder caber...

- Que é isso, Zefa? Desperdiçando leite?

- É não, Joaquim... Era pra caber a concha de nata que ferveu...

- Ah, meta a concha de nata no rabo e me deixe tomar café em paz!

Ô meu pai do céu, irritei o homem... Mas como, se não fiz nada? Ou fiz e não me lembro? Ele não pediu mais nata? Acho que pediu, mas agora não tenho certeza, vai ver minha cabeça inventou isso e me enganou. Era bem assim com meu pai... Ah... meu pai.

Paizinho, olha a marmita que a mãe mandou...

Marmita de merda, não tem comida aí, volta em casa e manda aquela vaca da tua mãe fazer uma comida decente. Avia!

- Zefa? Zefa? Volta pra terra, mulher, tá viajando?

Ai meu pai do céu. Me vi criança agora, e era eu menina, pés descalços andando milhas com marmitas... duas, três vezes ao dia. Eram mesmo duas vezes? Ou era só minha imaginação? Aí o que foi mesmo que minha mãe falou? Não, espera. Eu não voltei em casa... Acho que...

- Zefa, criatura inútil! Tá ouvindo não? Quero ovo estrelado!

Ai, ovo. Num fui buscar. Vou agora, vou correndo.

- Zefa burra! Tá indo aonde?

- O ovo, tenho que pegar no galinheiro...

- Que tu já era meio lesa eu já sabia, agora tá variando de vez, é? Olha o ovo na prateleira!

Ah... Aquilo é ovo? É mesmo. Mas não serve pra comer, acho... não me lembro direito porque, mas tenho certeza que não serve pra comer.

- Esse tá estragado, preciso buscar novos no galinheiro, vou já, num instantinho, volto num pulo.

- E vai estragar mais comida, burra? Se tá estragado por que guardou, abestada? Joga fora logo.

Jogo fora, claro. Vou jogar fora, mas não devo jogar fora, não era pra jogar fora, não era... Vou colocar no cantinho do tanque, fica aí guardado, não sei mais porque, não sei mesmo...

As galinhas, piu, piu, pintinhos novos, que lindos... Oi Jurema, oi comadres... Estão bonitas essa manhã, e que manhã mais clara, não é mesmo? Piu, piu... Quirera pra todas, alimentem seus filhos... Bom dia galo Gorgorão. Bela crista vermelha, fez muitos filhinhos... tão amarelinhos...

- Ô Zefaaaaaaaaaa!

Ai, ai, ai. Comadre, de cá um ovo pra eu estrelar pro Joaquim...

- Aí Joaquim, peguei os ovos, quer um ou dois, quer gemas moles?

- Não quero mais nada. Enfastiei com a sua demora.

Eu demorei? Será? Foi na quirera, no galo ou nos pintinhos? Ah pintinhos lindos...

- Esquenta esse pão na frigideira com bastante manteiga. E rápido antes de eu terminar o pingado. Avia, burra!

Avia, burra... Era o que meu pai dizia naquele dia da marmita, aquele dia... Como foi mesmo? Tinha um ancinho na estrada, jogado, enferrujado, mas ainda rijo...

- Demora dos infernos!

Era um ancinho, ou uma enxada? Era uma pá... mas não tava jogada na estrada, não. Eu fui buscar em casa. Isso. Ele me mandou buscar outra marmita e eu trouxe uma pá. Mas por que eu trouxe uma pá em vez de comida?

- Aí Joaquim, o pão... tá quentinho.

- E o leite acabou. Me dê mais leite, tartaruga dos infernos.

Mais leite, aquela concha de nata vai servir, que bom.

- Aí o leite, Joaquim. Com bastante nata.

- Desde quando eu tomo leite puro, égua? Põe café nessa merda!

Sim, esqueci, dois dedos de café. Não devia ter esquecido, que coisa, minha cabeça tá cada vez pior.

- Aí o café... Quer que estrale ovos?

- Estrala logo, égua!

- São dois, Joaquim?

- São mil, cabeça de pau!

Mil? Mil ovos? Não tenho mil ovos... não sei nem contar mil ovos...

- Vou buscar mais ovos então...

- Frita dois, burra, para de perguntar asneira!

Era uma pá. Uma pá que eu fui buscar em casa. Não trouxe marmita, trouxe a pá. Aquela pá que eu trouxe pra casa do Joaquim. É isso mesmo. A mesma pá que está aqui atrás da porta. Eu vim pra casa do Joaquim e pedi pra ficar, ele deixou. Me usou de frente e de trás, fiz coisa que não sabia que se fazia, lambuzei a cara e o corpo de porra e de sangue. De porra e de sangue.

- Os ovos, Joaquim...

- Até que enfim, vaca. Faz mais pão na frigideira pra eu comer com os ovos, abestada, vou comer ovo puro?

De porra e de sangue minha mãe também ficava lambuzada. E minhas irmãs. E eu.

- Vai ficar parada feito uma mula empacada? Que é do pão?

A pá. A mesma pá. Tá ai, atrás da porta. Olha ela. Forte e tensa.

- Pra que é essa pá, égua? Vai virar o pão na frigideira com uma pá?

Pesada, o mesmo peso que tinha naquele dia da marmita. Eu voltei com a pá, meu pai estava de costas. Levantei a pá até encostar no céu, assim...

- Que é isso, Zefa? Baixa essa pá!

O peso da pá nos ombros, o suor magoando os olhos, as lagrimas vertendo por minha mãe, minhas irmãs.

Por mim.

- Baixa isso, Zefa! Larga isso! Tá louca?

Louca. Meu pai ia dizer isso mesmo.

Mas não teve tempo.

Joaquim também não teve tempo de comer o pão com ovos estrelados. Agora tá estatelado no chão. Os miolos estão esparramados.

Não era um ancinho, não era uma enxada. Era uma pá. Está pá que carrego agora pra fazer um buraco no terreiro.

Uma cova.

Igual aquela que fiz no campo de milho, onde coloquei a massa mole e fria que um dia foi meu pai. Enterrado no campo de milho.

E agora jaz aí o Joaquim no terreiro.

Acho que vou ter que ir embora de novo.

Mas antes vou pegar outro ovo. Um ovo era meu pai, aqui onde escondi no cantinho do tanque. O outro será Joaquim.

Levo a pá pra estrada.

Que linda manhã de sol.

Jane de Paula Carvalho Santos
Enviado por Jane de Paula Carvalho Santos em 12/11/2007
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