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Precisava de algo para estimular a alma antes de desistir. Sempre fui informado da negligência de abandonar a vida em prol de um paraíso de múltiplas virgens. Não ligo muito a essas coisas, antes de desistir terei de resistir a outro tipo de abandonos. A vida mudou quando deixei de conseguir entrar naquela casa a cair, onde uma mulher louca gritava com as filhas. O cheiro a gordura não me impedia de lá entrar, apesar do nojo que tudo aquilo metia. Por vezes a casa estava impregnada de um frio atroz, como se um monte de almas penadas se digladiasse nas vinganças terrenas, interrompidas pela morte.

Um dia decidi continuar a andar, sem olhar para trás, sem sentir o medo da traição latente nos poros porcos daquela mulher, que batia nas filhas por um punhado de batatas fritas, um grão de areia do trabalho que me deu e a que não tinha direito sem ter que encarar aquelas faces enrubescidas pelo egoísmo.

Por Deus, ela sempre bendizia cada euro que eu deitava no seu poço sem fundo de vícios e desgraças. Quando eles acabaram, os seus efémeros sorrisos também desapareceram  e tive que abandonar por completo a casa dos gritos. Andei sem parar, sem que tivesse algum tipo de remorso e sorri por fugir daquelas batatas fritas rançosas que cheiravam a gordura.

Abandonei a vida que não tinha, para renascer noutro mundo, neutro de facas nas costas, de falsas esperanças e sementes que definhavam antes de começarem a crescer.

Ela ainda anda por lá. As filhas cresceram. Deixei de o querer saber no dia em que abandonei tudo.

O anterior marido agradeceu-me ter-lhe cuidado das filhas. Havia fugido por outro motivo latente.
Manuel Marques
Enviado por Manuel Marques em 06/10/2021
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