Enurese*infantil

Ao cair da noite, uma angustia recorrente começa a tomar forma: o medo de urinar na cama. Tenta não dormir, não consegue. Tenta não sonhar, impossível. O roteiro é invariavelmente o mesmo e monotonamente doloroso: “se dirige a um penico branco com bordas azuis, estrategicamente posicionado ao pé da cama, ao tempo em que lhe invade uma grande sensação de alívio. Enquanto a bexiga esvazia é tomado por uma sensação gostosa, inenarrável, mas logo a seguir uma umidade fria e desagradável começa a escorrer por suas pernas e sente o desconforto do pijama molhado”. Na sequência é acordado por tapas e gritos nervosos - não aguento mais isso; toda noite é a mesma coisa. Acorda, vamos logo, levanta da cama. Ai meu Deus! Tem que tirar o colchão; molhou até o travesseiro. E agora? Onde vai dormir? Hein, hein? E para que aquele momento não seja esquecido jamais (o que de fato acontece), tem o rosto esfregado no travesseiro encharcado de mijo até quase não mais respirar.

Todos da casa são despertados com a gritaria e acompanham, passivamente, aquele espetáculo grotesco. Um grande sentimento de vergonha, constrangimento, raiva e repulsa de si mesmo atinge sua alma. A esperada explosão de choro não mais acontece, nenhum som é emitido; se encolhe e alimenta uma vontade enorme de sumir. Na noite seguinte tudo se repete: o medo ao anoitecer, o sono profundo, a sensação de felicidade e o desespero do despertar sob gritos e tapas. Nada muda essa rotina. Ao lado da cama, antes de dormir, de joelho, pede a Deus para não fazer xixi na cama, reza e implora para ser acordado antes que o pior aconteça. A noite vem, o sono chega e, mais uma vez o penico branco com detalhe azul surge logo ali, pronto para ser usado; se dirige para ele com um largo sorriso no rosto em busca do bálsamo prestes a se concretizar…

Longe de casa, o pânico aumenta. Não há gritos ou tapas, mas o constrangimento é infinitamente maior. Sente que seu problema foi exposto ao mundo. Em ocasião dramática fora de casa, se prepara para dormir. No quarto, apenas uma lamparina**ilumina o ambiente. Procura o urinol e lá está ele, onipresente ao pé da cama. É rosa claro e decorado com tulipas brancas no seu terço superior. Reza concentrado a oração ensinada quando mal sabia falar: “Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a vós e, como prova da minha devoção para convosco, eu vos consagro nessa noite, meus olhos, meus ouvidos, meu coração, inteiramente todo meu ser. Desde que assim sou Vosso, boa Mãe, guardai-me e defendei-me como se fosse uma propriedade Vossa”. Muda o final para “desde que assim sou Vosso, boa Mãe, me acorde, não me deixe fazer xixi na cama”. Apesar das súplicas, mais uma vez é vencido pelo penico com o mesmo dilacerante roteiro: pavor ao anoitecer seguido da enurese e despertar traumático. Durante o dia, colchão exposto ao sol e roupas de cama estendidas no varal. Desvia o olhar, sofre.

*Normalmente somos capazes de controlar nossa bexiga; urinamos quando queremos, no momento e local adequados, mas não nascemos assim. O controle noturno costuma ocorrer por volta dos seis anos. Enurese é o nome que se dá à eliminação involuntária de urina, numa idade onde este controle já deveria existir. Urinar durante o sono é um problema psicológico e social bastante traumático para a criança, que pode mobilizar emocionalmente todo o núcleo familiar. Em torno de 15% das crianças, por volta dos sete anos de idade, podem ainda apresentar episódios de perda noturna. Aos 10 anos, este número cai para 5%. A enurese noturna é, por vezes, motivo de atitudes punitivas com agressões físicas e psicológicas à criança.

** Lamparina: equipamento para iluminar pequenos ambientes, feito com lata reciclada, adquirido em feiras livres, onde é colocado querosene e no qual é mergulhado um cordão de algodão, por onde o líquido sobe por capilaridade, para ser queimado na outra extremidade, chamada pavio.

FCintra
Enviado por FCintra em 14/10/2021
Código do texto: T7363316
Classificação de conteúdo: seguro