PRESO NA PRÓPRIA ARMADILHA

Passava em frente àquela mansão todos os dias para ir ao trabalho. Embora minha curiosidade fosse aguçada pelo aspecto imponente da construção, nunca havia parado para fazer uma visita. Motivo: a fila quilométrica de pessoas – na maioria crianças e adolescentes –, que se formava de segunda a sexta-feira para conhecê-la. Vinham turistas de todas as partes do Brasil e até do exterior para visitar aquele requintado prédio, atraídos também por uma inusitada placa afixada no muro, próximo ao portão principal, na qual estava escrito em letras garrafais: SENHORES LADRÕES, AVISAMO-LHES QUE ESTA PROPRIEDADE POSSUI ARMADILHAS DIVERSAS. ESPERO QUE NÃO QUEIRAM VER PARA CRER. QUEM AVISA AMIGO É.

Um dia, ao sair mais cedo do trabalho, decidi conferir o que aquele local tinha de especial. Entrei na fila e comecei a perguntar o porquê daquele aviso. Como havia muita gente na minha frente, deu tempo de escutar as várias versões das histórias sobre aquela casa e sobre o seu dono, de nome Ivan Mustafá. A que mais me chamou a atenção foi a que passo a contar-lhes.

– Dizem – começou um homem de cerca de 50 anos – que seu Ivan Mustafá escolheu para morar nesta cidade porque se encantou com ela desde a primeira vez que a visitou com sua esposa, na década de 70. Passaram a frequentá-la pelo menos uma vez por mês, já que era relativamente próximo da localidade onde habitavam. As belezas naturais – principalmente os muitos igarapés – e a tranquilidade do lugar fizeram com que, ao aposentar-se, o homem mudasse com a família para o que ele considerava um verdadeiro paraíso. Instalaram-se em uma casa confortável, com um terreno amplo, cheio de árvores frutíferas e um belo igarapé nos fundos. É bom dizer que seu Ivan se aposentou bastante cedo, pois começara a trabalhar ainda muito moço.

Assim aquele lugar foi para ele, durante vários anos, um Éden na terra. Quando havia muitos familiares e amigos em sua casa, estes podiam se acomodar tranquilamente à noite numa rede nas varandas e dormir ali sem nenhuma preocupação. Até que com a chegada da ocupação desordenada e a contínua má gestão de alguns administradores vieram também os problemas ocasionados por elas. Seu Ivan teve a casa assaltada uma, duas, três vezes. Pensara em mudar de lugar, mas passaram a habitar em sua mente pensamentos mirabolantes que o fizeram desistir da mudança.

O homem passou a ocupar o seu tempo com a pesquisa de armadilhas caseiras. Dizia ele para a esposa e para os filhos: – preciso arrumar uma maneira de dar uma lição nesses larápios de uma figa. Nada que seja mortífera, quero apenas que peguem um bom susto.

Foi assim que surgiu a primeira armadilha. Ao redor da casa, em pontos estratégicos, foram cavadas valas com profundidade suficiente para cobrir um homem de estatura mediana. Os buracos foram revestidos com uma malha de pescar e tapados por compensados finos. Ao cair algo na rede, um dispositivo era acionado e esta fechava-se, imobilizando a “presa”. Depois de fechadas, as valas foram cobertas com terra, de maneira que não parecia ter ali buraco algum. Para que os filhos e outras pessoas não caíssem na armadilha, inadvertidamente, os lugares eram cobertos por um bloco de cimento de concreto de espessura fina, mas resistente. Somente a partir das 22h os blocos eram retirados.

Pouco tempo depois, a primeira vítima. O ladrão desavisado foi pego e entregue à polícia. Seu Ivan resolveu investir numa nova armadilha ainda mais sofisticada. Começou a ler e a comprar tudo o que se referisse a acessórios de super heróis como Batman, Homem de Ferro, Homem Aranha, para ajudá-lo na construção do que ele chamava de “ciladas larapianas”.

Outra de suas ideias foi colocar nas portas e janelas dardos com material imobilizador, semelhantes aos usados por biólogos na captura de animais silvestres. Desta vez não só um, mas dois larápios foram surpreendidos com o invento de Ivan.

Uma das que mais fez sucesso foi uma ratoeira gigante que prendia e imobilizava o ladrão sem causar-lhe muita dor, pois a engenhoca era feita de material plástico, porém muito resistente.

Os vizinhos ficaram sabendo do sucesso das armadilhas e começaram a solicitar-lhe que fizesse também para eles vários dos modelos inovadores.

Aos poucos os inventos foram ficando mais sofisticados e deram tão certo que passou a patenteá-los e a vendê-los e com isso acumulou fortuna. A obsessão por maior segurança também foi aumentando. Sua casa foi aos poucos transformando-se num verdadeiro presídio, tantas eram as formas que ele inventara para torná-la inacessível aos invasores.

Tamanha obsessão por segurança fez com que a família tivesse pouco acesso ao que acontecia no mundo fora de sua casa. Pouco saíam para fazer compras, passear ou mesmo ir à escola. Os filhos tinham professores contratados especialmente para dar-lhes aulas na própria residência. Com isso o contato com a vizinhança ficou também restrito a alguns poucos que tinham permissão para visitar-lhes vez por outra.

Essa situação fez com que a esposa, não aguentando mais aquela situação, saísse de casa com os filhos, deixando-o naquela imensidão de casa em que se transformara o antigo lar dos Mustafá.

Ele, depois desses acontecimentos, ficou ainda mais perturbado com a ideia de segurança, ao ponto de chegar à loucura. Sua ex-esposa, para não colocá-lo em um hospício, contratou uma equipe de enfermeiros e médicos que se revezavam diariamente nos cuidados com o agora louco senhor Ivan Mustafá. Viveu assim até os 70 anos, quando faleceu de morte natural.

A família transformou o casarão em Museu com o objetivo de que as pessoas ficassem sabendo em que a obsessão por segurança transformou aquele homem: antes, sereno e feliz; depois, rico, infeliz, louco e prisioneiro dentro de sua própria casa.

– Após toda essa história, finalmente chegou a minha vez de entrar. Fiquei maravilhado com tanta tecnologia para a época, mas, ao lembrar os detalhes que me foram contados, senti naquela casa uma atmosfera de tristeza. Pensei: - Ele realmente foi um homem à frente de seu tempo. Pena que tenha caído na sua própria armadilha.