Um louco de sorte

Amanheceu, mas não tem ninguém aqui.

Se ela não tivesse ido embora, talvez eu conseguisse suportar alguma luz dentro desse quarto.

Mas mantenho as janelas fechadas.

O ventilador geme, lutando com a poeira entranhada em seu motor que eu nunca tive coragem de limpar.

Ela teria reclamado comigo por causa da sujeira e da bagunça.

E eu teria me sentido abençoado, por ter alguém se preocupando com o caos da minha vida.

Infelizmente ela não está aqui. E tudo o que me resta é esse vazio e o meu sono fora de hora.

Passo madrugadas acordado e as manhãs hibernando. Mas esse é um hábito difícil de se manter quando se precisa trabalhar. As contas seguem entrando por debaixo da porta. Uma hora vou ter que encará-las.

Tudo bem, eu penso. Antes agora do que depois. Não dá pra procrastinar para sempre.

Pulo da cama, abro as janelas e é como se alguém enfiasse uma chave de fenda nos meus olhos.

Depois da minha visão ter se acostumado com a luz, observo o lado de fora. Parecia um bom dia para começar alguma coisa nova. Bem... eu não tinha nenhum ânimo. Nenhuma vontade de me tornar uma pessoa diferente. Eu simplesmente queria que ela batesse na minha porta e me falasse que está tudo certo... que poderíamos esquecer todas as besteiras e voltar para debaixo dos lençóis.

Sonhar é de graça... penso.

Mas nada é de fato ‘de graça’... Era o que Alice dizia... nem o pão nem a cachaça...

Concluo o pensamento e saio da beirada da janela... Vou até o banheiro e escovo os dentes. A escova de Alice permanece do lado da minha. A única coisa que ela tinha esquecido de levar.

Me pergunto se devo jogá-la no lixo ou esperar...

Talvez ela volte...

Só talvez.

Termino o serviço e deixo a escova dela no canto... junto da minha. Concluo que eu devo ser um tipo especial de idiota por me agarrar nesse tipo de esperança.

Vou até a cozinha e passo um café. Faço para dois, mesmo sabendo que só vou tomar uma caneca.

Depois de pronto, pego o café e me deito no chão da sala. Fico com os olhos cravados no teto esperando o tempo passar.

Uma corrente de vento entra pela janela e eu percebo que do lado de fora o tempo tinha começado a virar. Sinto gotas de chuva molhando o meu rosto e agradeço pela gentileza do tempo. O calor do fim da manhã era insuportável essa época do ano.

Apesar da chuva começar a molhar a minha casa. Permaneço no mesmo lugar, apreciando o café e a ventania.

Alice teria corrido para fechar as janelas no primeiro momento.

Mas foda-se o que ela faria.

Foda-se a mania de limpeza. Foda-se a organização. Foda-se o cheiro bom que ela deixava pela casa depois do banho.

Foda-se tudo...

tudo que eu sentia falta.

Acho que existe um pouco de loucura no amor. Ou pelo menos no nosso amor...

Talvez eu fosse ficar louco na ausência dela...

Tomo mais um gole de café e uma rajada de vento e chuva me obriga a me levantar...

Fecho as janelas a contragosto, me levanto e corro até o banheiro.

Encaro a escova de dentes quase que ofendido por minha incapacidade de me livrar dela. De me livrar do último rastro físico que Alice tinha deixado na minha vida.

Pego a escova, decidido a jogá-la fora. Talvez eu devesse quebrá-la antes... ou só enfiar num saco preto... A dúvida me paralisa por alguns instantes, até que a campainha toca.

Deve ser o síndico... para reclamar de alguma coisa... Penso...

A figura era insuportável. Alice o odiava ainda mais do que eu...

Até nisso eu tinha saudades dela...

A pessoa insiste na campainha e ando até a porta ainda segurando a escova de dentes.

Abro e dou de cara com Alice. Ensopada de chuva.

Olho para trás da porta e vejo que ela também tinha esquecido o seu guarda chuvas.

Tinha um sorriso amarelo no rosto dela.

Me afasto pra que possa entrar e Alice dá um passo pra dentro.

- Que bagunça é essa? – É a primeira coisa que ela fala.

Não respondo nada.

Lágrimas escorrem dos meus olhos sem que eu consiga controlar.

Alice se adianta e me abraça, como se soubesse o motivo do choro.

- Graças a Deus, meu amor... Graças a Deus... - Foi tudo que consegui dizer.

E eu, de ateu, passei a crer, pelo menos por alguns instantes. Ou talvez eu estivesse apenas um pouco louco.

Mas enfim, um louco de sorte.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 28/10/2021
Reeditado em 22/04/2022
Código do texto: T7373298
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.