Temporada na fazenda

Risos e gritos eclodem pelo ar seco e sol escaldante enquanto o vento empurra os cabelos para o alto e pressiona as bochechas num formato esquisito tanto maior, quanto maior era a velocidade na carroceria do velho caminhão de aluguel. Todos gritam quando o caminhão balança, perigosamente, ao passar pelos buracos da estrada improvisada de terra em péssimo estado de conservação. Os gritos mais alegres e ensurdecedores acontecem quando a carroceria se aproxima dos galhos das árvores obrigando todos a se abaixarem sob o risco iminente de serem atingidos. Nesses momentos, invariavelmente se emitia, em uníssono, um grito de guerra, “passarada”, sem que se soubesse o significado, apenas como forma de manifestação coletiva. Raramente se ia à fazenda de caminhão. Na maior parte das vezes o transporte era feito a cavalo e a pé. Mulheres e crianças iam de cavalo e os demais a pé. Também nessas ocasiões a viagem era muito divertida a despeito das reclamações de dores nos pés. As crianças pequenas ia sempre no cabeçote, parte posterior da sela em formato de cuia e bastante incômodo. Os maiores, quando cansados, iam na garupa do cavalo.

A chegada era sempre uma festa, todos corriam de um lado para outro, se organizavam em grupos de conversas, cumprimentavam os que lá esperavam. O clima radiante registrava a satisfação da família em estar na fazenda após um bom período. Em tamboretes de madeira ou no chão de terra batida da cozinha, sentava-se para conversar, saber das novidades, degustar cocadas de leite, ambrosia e para tomar café-caldeado com receita autoral que constava da torrefação dos grãos em fogão de lenha seguido da mistura com calda de açúcar e distribuição para esfriamento em laje de pedra. O processo de cozimento emitia um cheiro delicioso que se espalhava por toda a casa. As placas obtidas após o preparo, eram trituradas em um velho pilão produzindo um baticum típico que fazia parte do processo. Quando em contato com a água fervente o pó recém-pilado era filtrado em coador de pano, tão escuro que parecia estar sujo, e resultava num caldo maravilhoso que era sorvido em doses generosas com um prazer inenarrável.

Era visível o passado glorioso fazenda. A casa grande mantinha certo ar de dignidade apesar do péssimo estado de conservação onde se viam rebocos caídos, telhas quebradas, madeiramento irregular e ausência de qualquer vestígio de pintura nas paredes. Ao atravessar o portal de entrada deparava-se com uma sala muito grande com uma mesa imensa e robusta, rodeada de gavetas cheias de arreios de cavalo em lugar das louças e talheres do passado. Não havia cadeiras nem bancos ladeando-a. Uma segunda sala contígua à primeira e um pouco menor, era ocupada pela mesa onde se fazia as refeições, esta sim, ladeada por dois bancos enormes, sem recosto, com duas cadeiras nas extremidades. Ao redor das salas ficavam os quartos e ao fundo a cozinha de chão batido com um fogão de lenha no canto e uma prateleira improvisada onde se guardava panelas de barro, pratos e canecas esmaltadas brancas corroídas com manchas pretas nas bordas, algumas poucas louças e talheres.

Ao lado direito da porta, logo na entrada, havia uma sala quase sempre fechada à chave que aguçava a curiosidade da criançada. Ao se ter acesso, deparava-se com um belo e rústico armário embutido na parede, com portas tipo igreja, onde eram guardados os doces preparados para receber os visitantes. O doce de umbu elogiado pelo sabor e ponto de corte, dizia-se que o ponto de corte era similar ao do doce de goiaba industrializado, era ansiado por todos. O grande tesouro do quarto, no entanto, era um nicho prateado protegido por paredes de vidro com Santa Terezinha ao centro, vestida de branco, com uma coroa dourada na cabeça e um manto azul sobre as costas a carregar o menino Jesus nos braços. Do alto de uma pilha de pedras transparentes e brilhantes, imitando cristais, Santa Terezinha observava com candura os raros visitantes que tinham o privilégio de vê-la e de rezar sob seus pés. O nicho exercia efeito magnético sobre as crianças que não paravam de admirá-lo e os adultos não deixavam de fazer suas orações como em um rito de chegada.

Ocupando lugar de destaque na cozinha, dois imensos potes eram destinados a armazenar água para beber, quase sempre barrenta apesar do esforço em se coar. Fechando a boca dos potes, um tecido endurecido com grande quantidade de resíduos orgânicos revelava a baixa qualidade da água que era consumida. Diariamente, pela manhã e à tardinha, as mulheres tinham como rotina se dirigir ao “tanque de beber” para transportar a água que seria consumida. Em fila, com potes de barro apoiados em rodilhas feitas com pedaços de pano velho, as mulheres seguiam com um gingado próprio desafiando a força da gravidade. Impressionava a habilidade com que os potes eram transportados na cabeça; jamais caiam, mesmo quando corriam da ameaça de algum boi extraviado de boiadas alheias que cruzavam a fazenda.

Ao chegar ao tanque, as mulheres se posicionavam de cócoras e, com a saia presa entre as pernas, movimentavam a superfície da água com uma cuia de cabaça, de um lado para outro, em um movimento sincronizado para só depois coletar a água que seria despejada no pote. Acreditavam que essa ação seria capaz de retirar os resíduos e melhorar a qualidade deixando-a menos barrenta e mais limpa. Além do “tanque de beber” existia outro tanque, chamado “tanque do gado”, o qual era utilizado para banho e lazer dos moradores e visitantes e para uso do gado e dos equinos (cavalos, burros e jegues), seja para beber água ou banhá-los no caso, os cavalos, pois jegues e burros eram claramente descriminados. À tardinha o tanque era utilizado para banho, primeiro as mulheres seguiam em bandos com suas toalhas nos ombros, roupas limpas e sabonetes e logo depois os homens.

A noite chegava e a animação diminuía aos poucos com a escuridão; o clima soturno tomava conta dos cômodos da casa. A luz que vinha das lamparinas e fifós (pequenos lampiões de lata reciclada, vendidos em feiras livres) não minimizava o clima lúgubre, além do que, ao serem acesas, liberavam forte cheiro de querosene e soltavam uma fumaça escura que borrava o telhado e as paredes. A vontade de fazer xixi à noite era um suplício pelo medo do escuro e de cobras. Não havia banheiros na casa, tão pouco latrina ou fossa, o mato era a única opção para fazer as necessidades. De madrugada, o vai e vem das vacas sendo ordenhadas despertava a todos que, apesar do sono, eram instigados a participar do ritual de tomar leite retirado ainda quente do peito da vaca. Alguns relutavam, à revelia dos elogios que se fazia e, com frequência, fugiam desses eventos, seja pelo sono da madrugada seja por não querer tomar o leite direto da vaca. Um pouco mais tarde, no entanto, animava a todos o cheiro do café coado e do leite queimado durante o cozimento em panela de barro. O escaldado de leite feito com farinha de mandioca bem fina, despejada aos poucos em leite fervente sem parar de mexer, era o dejejum favorito de muitos, assim como o ovo de galinha de capoeira, com gema bem amarela, frito em gordura de porco salteado com pedaços de torresmo.

Antes do café da manhã, porém, pequenos grupos com copo na mão se dirigiam até o juazeiro (planta típica do sertão nordestino e, praticamente, a única que poderia se chamar frondosa), perto da casa para escovar os dentes. As folhas eram coletadas por alguém alto o suficiente para alcançá-las e se dava início a escovação. A espuma formada era expelida por grandes bochechadas e sempre com a maior urgência para se ter acesso ao banquete oferecido no café da manhã. Se dizia a boca cheia que a espuma formada pelas folhas de juazeiro era mais eficiente na higienização dos dentes do que qualquer pasta de dentes conhecida até então, sendo a marca “kolinos” a mais usada.

Um evento sempre presente nessas ocasiões, com início ainda de madrugada, era o abatimento de uma rês, quase sempre um cabrito em plena juventude, apreciado pela maciez da carne e ausência de cheiro forte comum nos animais mais velhos. Logo ao sair do curral se deparava com o cabrito dependurado de cabeça para baixo no galho de uma enorme cajazeira de frutas azedas (imprestáveis ao consumo, quem sabe, pela função que lhe era dada), abatido há pouco tempo com um golpe mortal de machado. O animal era então sangrado e o sangue coletado, cuidadosamente, em uma grande bacia de alumínio. Em seguida o couro era retirado em operação feita com grande maestria e, após curtido, vendido aos artesãos de chapéus, vestimentas de vaqueiro, selas, arreios e outros subprodutos. Logo após, iniciava-se a retirada das vísceras e das partes nobres de carne separando-se as costelas, os pernis e a parte interna da pele que ficaria ao sol e noite por vários dias para secar. De todas as lembranças desse período, a mais marcante era a visão dos olhos esbugalhados do cabrito como a observar com estupor seus algozes.

Ao final da temporada a alegria da chegada era substituída por um certo sentimento de tristeza e de saudade antecipada. As rodas de conversas diminuíam, assim como as risadas. A subir no velho caminhão para o retorno não almejado o pensamento presente era se haveria uma nova temporada, pois, a cidade, sempre ela, poderia se tornar mais atraente o que de fato aconteceu, infelizmente.

FCintra
Enviado por FCintra em 24/11/2021
Reeditado em 03/04/2023
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