Todo dia a história se repetia. Ouvia silenciosa aquela ladainha. Júnia não tinha coragem de se desligar de Alfredo. Mas para não surtar, pegava Alice pra Cristo. Amigos são pra isso, dizia Alice. Mesmo acordando as 5 da manhã, numa rotina de dar inveja aos leitores: ninguém nunca cita o peso de ser compreensivo. Que ele a traía, que não pagava as contas, que não ajudava com as crianças, ela já sabia. Mas naquela noite havia algo diferente. Descobriu numa dessas invasões às redes sociais que o amor de sua vida, eternizado pelas iniciais grafadas na porta do banheiro da escola, tinha vida dupla. Com o pseudônimo de Vendedor de Sonhos, negociava emoções na bolsa de valores (da vida). Criativo, o corretor letrado em picaretagem, descrevia-se em perfil como dono de casa, evocando sobre si o peso de ser sensível, casto e fiel. Uma foto de um corpo sarado, refletia uma cruz de ouro, cristão: temente a Deus. Dizia manter seus sentimentos empacotados para usá-los apenas com a pessoa certa: amor, cumplicidade e reciprocidade. Ela leu rindo (de nervoso). Empacotado é morto? Corpo sarado? O tanquinho cai bem como caixa dágua. Mas como tudo pode piorar, no cantinho da tela um ícone nominado "Mercado dos Sentimentos". O corretor, agora caloteiro, oferecia sentimentos? Ela, em dúvida sobre a capacidade da "benção de Deus" de escrever aquilo foi lá tirar satisfação. Descrente, perguntou: 

- Que história é essa de Vendedor de Sonhos, negociando no Mercado de Sentimentos? A capivara aqui está louquinha pra saber de onde tirou isso. Nem escrever direito tu sabe? 

- De onde tirou isso sua louca? Mexendo no meu computador?

- Exatamente isso, a louca tirou do seu computador. Moço casto, de família, cristão religioso, saradinho- disse ela ironizando.

- É que nunca tive coragem de dizer a você sobre... É que...

- Desembucha, filho de uma quimera.

- Eu sou diferente, sensível, misterioso, gosto também do que você gosta...

- Não vai me dizer que você é gay? Fala logo lesma engomada.

O homem levantou nervoso como se tivesse incorporado ao vulcão e suas lavas escorriam em forma de trejeitos de grande agressividade. E indo direto pra cima dela, olhou-a nos olhos e disse:

- Desde quando ser escritor é coisa de gênero, me chame do que quiser, mas disdo nunca. Meu pai estremeceria no caixão. Limpa a sua boca de pia.

- Então o seu Mercado de Sentimentos anda mais pra Mercado de Fomento? respondeu Júnia em tom de ironia. Chamar de galinha pode, de pintinho não? Agora mais essa.

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 30/11/2021
Reeditado em 01/12/2021
Código do texto: T7397161
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