bom conselho

Isto de divórcio é sempre demorado. Faz dois anos que separei de minha mulher e ainda ontem lá estava eu à sua porta a devolver-lhe umas coisas e pedir de volta outras tantas que somente agora vieram me fazer falta. É engraçado isso de estar juntos: algumas coisas nossas passam a ser do outro com tanta facilidade e intensidade, como se tivessem sido desde sempre. Às vezes se separar dessas coisas dói mais do que se separar da dona delas.

Como eu ia dizendo, fui deixar ontem as tais coisas. Na volta, no ônibus, eu vinha pensando, “humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei” e como um pensamento puxa o outro e ao final o ultimo é inversamente proporcional ao primeiro, eu prestava atenção nas pessoas das paradas de ônibus. Eu estava do lado da janela, no fundo. Quando ele parava eu olhava para as pessoas que já estavam dentro.

Várias mulheres. Umas bonitas, outras nem tanto. Nada que alguns goles de uma boa cerveja não ajudassem a engolir. Umas frescas, com seus perfumes, abafando. Outras escondendo a ingenuidade num batom. Há aquelas que escondem sua voluptuosidade atrás de livros e cadernos. E há ainda aquelas que nos fazem o favor de não nos esconder nada.

Parada. Corro os olhos na paisagem, como se procurasse algo sem saber o que é. De repente meus olhos param num par de olhos doloridos, ansiosos, cansados. Queria desviar a vista daquela imagem, mas não conseguia. Eu notava que aqueles olhos também viam os meus. Diante desta situação o que me restava era descobrir de quem eram aqueles olhos. O ônibus saía e eu, desesperado, queria saber de quem eram. Levantei-me, mas logo sentei e me conformei, mas não mais observava as pessoas que estavam no ônibus.

Outra parada. Olhei novamente, desta vez por impulso, e novamente os mesmos olhos. Assustei-me. Era uma menina. Bonita, não fosse seus trajes e a marcas do perigo gravadas em seu rosto. Ela me olhava também. Da mesma maneira que a outra pessoa me olhava. Outra vez o ônibus saía e me deixava sem resposta, seguindo seu itinerário sem dar importância ao que estava acontecendo.

E parando e seguindo, eu continuava a ver o mesmo olhar. Homens, velhos, crianças, mulheres... Estavam a me cobrar algo que eu não tinha. E me olhavam tanto, se aproximavam, queriam me tocar, eu me esquivava, mas não podia evitar aquele olhar que tinha a força de um grito que todos tentam calar e muitos fingem não ouvir.

Eu tentava não olhar mais para as paradas, fechava os olhos, mas os olhares estavam na minha mente. Vi minha parada passar e não tive coragem de descer por mais que minha vontade pedisse. Eu sabia que aquelas pessoas iam me cobrar, de qualquer forma, eles iriam me cobrar. Não desci.

Os olhares continuavam a me perturbar. E eu me perguntava: eu sozinho não sou nada, mas como eu existem muitos, então por que não tentar? Faremos greves, passeatas, manifestações. Abraçaremos uma causa justa. Tomaremos o poder e proibiremos o descaso. Não seremos mais massa de manobra, não seremos mais tão sozinhos em meio a tanta gente. Calaremos a boca de quem não disser a verdade, soltaremos os condenados e lhes daremos terras e condições dignas de viver num país em que o tráfico alimenta crianças e lhes dá a esperança de um futuro, mesmo que seja breve...

De repente ouço uma voz ao longe:

- Ô da camisa branca!

Olho ao meu redor. Todos estamos de camisa branca.

- Ô da camisa branca!

Achei que poderia ser comigo e virei:

- O passeio acabou. Fim da linha.

Era o cobrador. Minha camisa estava suada e somente eu estava no ônibus. Sonhando.