Flor

Estava sozinho pela primeira vez na noite. Sentado num banco na beira mar de Olinda, eu olhava o mar quebrando a distância. A maresia invadia os meus pulmões e afastava o mormaço da noite pra longe de mim. Havia incontáveis estrelas no céu e nenhuma nuvem para atrapalhar a vista. No entanto eu só via os olhos dela. Como duas fogueiras incendiando a noite e roubando a minha atenção apenas para si. Eu podia ouvir a sua voz, conversando com outras pessoas logo atrás de mim, mas era quase como se ela estivesse ao meu lado. Era estranho. Era tudo muito repentino, mas eu me sentia completamente entregue... e talvez até feliz. Por mais que não entendesse muito bem o que estava acontecendo.

Fui arrancado dos meus pensamentos quando ela se sentou do meu lado.

Raissa encostou a cabeça no meu ombro e entrelaçamos os dedos de nossas mãos.

Quando olhei de lado, ela sorria.

- O que foi? – Perguntei.

- Estou no brilho – Ela disse.

- Você nem bebeu muito.

- Nem precisa. Eu sou fraca pra bebida.

Ela se aconchegou novamente em mim e nos beijamos. Ficamos ali então, sem nos preocuparmos com o resto do mundo. Perdi um pouco a noção do tempo. Era tudo muito bom. Eu me sentia muito bem... de uma forma que eu não me sentia há muito tempo.

Até que Raissa parou e me olhou diretamente nos olhos.

- Me leva pra sua casa hoje? – Ela perguntou, com os olhos faiscando.

- Tá tudo meio bagunçado lá.

- Eu não me importo.

- Então vamos.

- Não precisa ser agora. Ainda está cedo. – Ela disse, passando os dedos pelos meus cabelos.

Não respondi, mas voltamos a nos beijar.

Não estávamos num lugar muito seguro para ficar tão desatentos, mas naquele momento deixei tudo de lado e simplesmente me deixei levar.

2

O telefone tocou, no meio de nossas roupas e Raissa se levantou da cama com certa urgência. Tirou o celular do bolso de sua calça jeans e atendeu.

- Oi amor. – Ela falou e foi até a janela, buscando alguma privacidade.

Inicialmente me senti tentado a procurar ouvir o que ela estava falando, mas me virei de lado e apoiei minha cabeça sobre o meu travesseiro. Depois de alguns instantes ela voltou e se deitou do meu lado, com o rosto bem de frente ao meu.

Os olhos de Raissa pareciam duas brasas enquanto ela me encarava. Existia algo de febril nela. Talvez algo fora de lugar. Algo que eu nunca soube explicar. Mas que também nunca procurei entender. Quando nos encontramos pela primeira vez, eu não tive certeza, mas algo me disse que ela não estava só. Ainda assim deixei que as coisas acontecessem.

Que tipo de homem isso me fazia? Ela passou a mão pelos meus cabelos e se aproximou pra me beijar. Eu correspondi. E a partir daquele momento eu sabia que não tinha muito mais a fazer, agora que eu tinha certeza.

3

- Faz diferença pra você? – Raissa perguntou, depois que lhe questionei se ela tinha outra pessoa.

- Sinceramente, faz.

- A resposta você já sabe.

- Ok. – Respondi laconicamente, enquanto ela acendia um cigarro.

- O que você quer que eu faça? – Ela perguntou.

- Não sei.

- Em geral os homens não tem problema com isso.

- Não me importa o que os outros homens acham ou deixam de achar.

Ela deu um trago no cigarro e soprou a fumaça pra cima.

- Eu pensei que você sabia.

- Você não me disse nada.

- Tudo bem. Mas e agora?

- Olha Raissa. Eu não sei se tenho psicológico pra lidar com uma situação dessas.

- Que situação? Pensei que se tratasse só de prazer pra você.

- De onde você tirou isso?

- Bem. Não sei. Mas você não está em posição de me cobrar nada.

- Caralho! – Eu murmurei, saltando da cama.

Raissa largou o cigarro no parapeito da janela, andou até mim e ficou bem na minha frente.

- Me desculpa, ok? Eu podia ter sido mais sincera com você. Mas não precisa se culpar por nada. A responsabilidade é minha. Você não deve nada a ninguém.

- Não é bem assim que eu penso.

- Esse é o teu problema, meu amor. Você pensa demais.

Raissa então me abraçou e beijou o meu pescoço. Com meu corpo preso ao dela, era difícil de discordar. Ou de disfarçar que eu estava em desvantagem argumentativa ali. Ela se deitou na cama e me puxou pra cima dela. A partir daquele momento, passei a ser cúmplice. Quando ela me colocou pra dentro, eu já não tinha mais nada a reclamar.

4

Raissa bateu na minha porta e entrou assim que eu abri. Não disse nada. Simplesmente foi até a janela onde costumava fumar e acendeu um cigarro. Me sentei na minha cama e fiquei observando enquanto ela fumava e batia o pé no chão freneticamente. Em geral um cigarro era suficiente pra que se acalmasse.

Ela terminou de fumar, mas continuou calada, como se esperasse por algo.

- O que aconteceu? – Perguntei enfim, pra quebrar o gelo que tinha se formado no ambiente.

- Eu vou falar. Mas não quero que você faça nada a respeito. Só me ouça.

- Está certo. – Respondi, ansioso.

- Eu estou grávida.

- Desde quando? – Perguntei.

- Acho que dois meses.

Não respondi nada. Mas comecei a fazer contas na minha cabeça no mesmo instante.

- Eu sei o que você está pensando. – Ela continuou. – Não se preocupe com isso.

- Como você quer que eu não me preocupe?

- Não sei. Não sei nem por que estou lhe contando isso.

- Mas pelo tempo, a criança pode muito bem ser minha.

- A criança é minha e você não tem nada a ver com isso. – Raissa falou, exaltada.

Me deixei afundar na cama e fiquei com os olhos pregados no teto.

Raissa se aproximou e sentou ao meu lado.

- Não posso ameaçar o meu casamento por causa de uma aventura.

- É disso que se trata?

- Claro. Você é ótimo. Mas eu preciso de estabilidade. Ou você acha que eu quero criar uma criança nesse apartamento apertado, esperando você ganhar algum dinheiro com os livros que você escreve? Preciso ser pragmática.

Fiquei calado. Aquilo tudo me doía, mas eu conseguia entender o lado dela.

Raissa me deu um beijo na testa e sussurrou.

- Preciso ir agora. Por favor, não me procure. Não preciso de nenhum drama na minha vida. Me desculpa, mas espero não te ver nunca mais.

Fechei os olhos e acompanhei barulho dos passos dela até a porta.

Quando tive certeza de que ela já tinha ido embora, abri os olhos e comecei a chorar. Pelo nada que eu tinha, e por tudo o que eu havia acabado de perder.

5

Eu soube pelas redes sociais de um amigo em comum, que Raissa havia falecido.

Não consegui segurar as lágrimas quando li a notícia.

- A criança é minha e você não tem nada a ver com isso. –

- Me desculpa, mas espero não te ver nunca mais. -

Essas palavras dela nunca me saíram da cabeça. Dezoito anos não foram suficientes pra apagar. Talvez nem uma vida inteira fosse. Mesmo que eu quase tivesse esquecido de todo o resto. Talvez eu tivesse pecado por omissão ou por complacência. Ao ter a deixado ir embora sem dizer nada. E isso pesava sobre mim muito mais do que qualquer outra coisa. Larguei o computador de lado, peguei o celular e liguei pra o amigo em questão.

- Roberto. Boa noite. – Falei.

- Boa noite. Tudo bem?

- Cara. Que história é essa que Raissa faleceu?

- Foi velho. Uma pena. Fez uma semana hoje. AVC. Um negócio fulminante. Um dia ela estava sorrindo, comemorando o aniversário, no outro estava pálida, dentro de um caixão.

- É difícil até de imaginar.

- É sim. Mas não sabia que vocês eram próximos.

- Tem uns dezoito anos que não nos falávamos.

- Ela ficou viúva ano passado. E deixou uma filha, que deve ter mais ou menos essa idade.

- Sério?

- É.

- Onde ela está enterrada? Você sabe?

- No morada da paz.

- Entendi. Obrigado Roberto.

- Não foi nada. Você tá bem?

- Não exatamente. Preciso ir agora.

- Certo.

Desliguei o telefone e fiquei sentado na cama tentando digerir tudo aquilo. Puxei novamente o computador pra perto e procurei pelas redes sociais o máximo de coisas sobre Raissa que eu pude. Meu coração quase parou quando encontrei uma foto da filha.

Os olhos certamente eram os mesmos da mãe. Mas não dava para negar as semelhanças com as minhas feições.

O nome dela era Flor. O nome que eu teria escolhido.

6

Andei bastante pelo cemitério antes de tomar coragem de ir até sepultura onde Raissa estava enterrada. Mas por fim, respirei fundo e fui até lá. Eu não tinha trazido flores nem nada em especial além das minhas lágrimas e lamentos. Ela estava morta, mas ali eu me sentia também com um pé na cova. Quase morto. Me sentei bem em frente a lápide e me deixei desabar. Mas em vez de gritar tudo o que eu estava sentindo, risquei tudo em um papel.

Você me roubou uma vida inteira. É verdade. Mas eu ainda não consigo te odiar por isso. Mesmo depois de tanto tempo. Mesmo depois do acontecido. Paro pra pensar comigo mesmo, e não consigo encontrar as palavras que tentei juntar nesses anos todos. E me pergunto se existia algo que eu pudesse ter te dito, pudesse ter evitado que você fosse embora. Sinto muito, por isso e por todo o resto. Não te trouxe flores, e nem sei mais o que poderia te dar, além das minhas lágrimas já tão fora de hora.

Não vi nascer, nem crescer, a nossa flor. Mas quase te agradeço, por ela não me ver aqui, aos prantos, por você e por tudo que perdi. O que me resta, meu amor? Além de me lamentar pelas coisas que não vivi. Por teu egoísmo, por minha covardia. Acho que às vezes o destino é mais cruel do que nós conseguimos lidar. Por isso tantas fugas nos nossos caminhos.

Ela tem os seus olhos. Isso é certo. Seria triste se não tivesse.

Me pergunto se algo de mim vive dentro dela.

Sinto muito por tudo.

Adeus.

Por fim, dobrei o papel e deixei entre as flores que já estavam meio murchas.

7

Tive dificuldade em dormir nos dias que se seguiram. Passei quase 48 horas em claro, mas finalmente algo se acalmou dentro de mim e eu pude finalmente cair no sono. Dormi por quase um dia inteiro. Não me lembro de ter sonhado.

Acordei com a campainha tocando. Esfreguei os meus olhos e a campainha tocou de novo, insistentemente. Me levantei da cama e atendi a porta.

Uma mulher jovem, toda vestida de preto estava parada na minha frente. Não a reconheci imediatamente, provavelmente pela minha vista ainda meio embaçada pelo sono.

Então ela tirou os óculos escuros e sorriu. Quando vi aqueles olhos me encarando. Achei que tinha voltado dezoito anos no passado.

- Rômulo? – Uma moça me perguntou.

Fiquei calado por alguns segundos. Mas então gaguejei.

- Sou eu sim.

Ela abriu a bolsa e tirou um papel dobrado. Então me mostrou.

Era a minha carta.

- Eu sei... Minha mãe já tinha me dito. Mas eu acho que sempre soube. – Ela disse.

Então finalmente a reconheci. E novamente, não consegui segurar as lágrimas.

Flor me abraçou e chorou junto comigo. Foi então que eu percebi. Ela tinha os olhos da mãe, mas o coração batia igual ao meu.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 29/12/2021
Código do texto: T7417526
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