QUEDA

O telefone tocou. 1:30 da madrugada. Atendi. Era Matheus.

- Oi. Desculpa ligar essa hora. Mas preciso que você venha aqui. – Ele falou.

- No meio da madrugada?

- Você acha que eu te ligaria se eu tivesse outra opção?

- Aconteceu alguma coisa?

- Claro que aconteceu. Ela não está bem.

- E o que eu tenho a ver com isso?

- Bem. Ela está trancada no banheiro gritando o seu nome.

- Continuo sem saber o que eu tenho a ver com isso.

- Olha cara. Você vem se você quiser. Mas eu não garanto que vá estar tudo bem pela manhã.

- Ok.

- Ok significa o que?

- Estou indo.

- Obrigado.

Desliguei o telefone e andei pelo quarto. Olhei para Natalia, deitada na minha cama, adormecida.

Vesti minha roupa e balancei levemente braço dela pra que acordasse.

- O que foi? – Ela perguntou grogue de sono.

- Preciso dar uma saída.

- Que horas são? Aonde você vai?

- 1:30. Preciso ver uma pessoa.

Natália sentou-se na cama e me olhou, provavelmente tentando desvendar o que eu estava pensando.

- É ela, não é? – Perguntou irritada.

- Sim.

- O que ela quer?

- Não sei. Matheus me ligou. Disse que ela não estava bem.

- E o que você tem a ver com isso? Você não é responsável por ela.

- Eu sei.

- E então?

- Ele estava preocupado com a possibilidade dela fazer uma besteira.

- Ela só quer fazer você de refém. Não tá vendo isso?

- Talvez seja. Provavelmente é isso... Mas o que você quer que eu faça? Ela pode fazer uma merda e eu não estou pronto pra lidar com esse tipo de coisa de novo.

Natália cruzou os braços, respirou fundo e mordeu os lábios.

- Olha só. Eu não vou nem tentar esconder o quão irritada eu fico com esse tipo de coisas. Mas eu conheço você bem o suficiente pra saber que nada que eu fale vai mudar sua cabeça. Então vá logo.

- Eu sinto muito. – Respondi.

- Não sinta.

Natália se deitou novamente na cama e fingiu tentar dormir.

Peguei minha carteira, celular e chaves e saí de casa. Saí na frente do prédio e pedi um taxi. Ela morava tão perto que quase não fazia diferença pegar um taxi ou um Uber. Expliquei o meu destino ao taxista e ele acelerou o carro. Depois de dois sinais de trânsito e uma curva, ele parou na frente do prédio de Lídia. Paguei o motorista e o porteiro do prédio me deixou entrar, por já me conhecer. Tomei o elevador e em questão de minutos estava na porta do apartamento dela. Antes mesmo que eu tocasse a campainha, Matheus abriu a porta.

- Ouvi seus passos no corredor. – Ele se explicou, me deixando entrar.

- Onde ela está? – Perguntei.

- No banheiro.

A sala deles estava uma bagunça. Aparentemente estavam bebendo e entraram em algum tipo de briga. Havia cacos de vidro no chão e uma mancha na parede onde provavelmente Lídia arremessou alguma garrafa.

Matheus parecia exausto e realmente aliviado por eu ter chegado. Logo que eu entrei, ele fechou a porta atrás de si e se deixou cair no sofá.

Fui até o banheiro e bati na porta.

- Lídia. Sou eu. – Falei.

- O que você quer aqui, seu filho da puta? – Ela gritou do outro lado.

- Pelo que eu entendi você queria me ver.

- Então você entendeu tudo errado.

- Ok.

Ela silenciou e eu olhei para o meu relógio. 1:55. Quando virei minhas costas para ir embora, ouvi a porta do banheiro se abrindo. Lídia estava devastada. O rosto estava manchado de maquiagem e lágrimas e parecia ter bebido bastante além da conta.

- Por que você veio? – Ela perguntou.

- Porque você estava precisando. Oras.

- Mas eu pensei que você me odiasse.

- Talvez eu odeie. Mas não te quero morta.

- E você acha que eu iria me matar?

- Matheus deu a entender que essa era uma possibilidade.

- Aquele arrombado não sabe de nada. Eu só estou um pouco estressada.

- Você tomou alguma coisa?

- Só vinho.

- Certeza?

- Talvez eu tenha misturado com algumas coisas a mais.

- O que exatamente?

- Olha. Você nunca gostou de saber das drogas que eu uso. Por que o interesse agora?

- Porque eu quero saber se você está bem. Só isso.

- Eu estou, não tá vendo?

- Não parece.

- Nós tivemos uma briga... e eu estou cansada disso tudo.

- Olha Lídia. Não é bem meu lugar mediar suas brigas com seu namorado.

- Ele não é meu namorado. Eu só estou saindo com ele... Só estou saindo com o PAU dele, pra falar a verdade, que é a única coisa que parece prestar nele. – Lídia gritou de forma afetada.

- Tanto faz. Não importa. Não é meu lugar mediar suas brigas com o cara que você me traiu durante nosso relacionamento.

- Você tinha que trazer isso à tona, não é? – Ela gritou, esmurrando a porta. – Agora o pobre indefeso, vai se fazer de vítima e jogar na minha cara todos os meus erros como mulher.

- Não estou aqui para fazer isso.

- E está aqui por que motivo?

- Eu vim garantir que você não fizesse nada que pudesse se arrepender depois

- Nunca vi mortos se arrependerem de nada.

Lídia pegou uma cartela de remédios para dormir e jogou no meu peito.

Me abaixei e apanhei a cartela. Todos os comprimidos haviam sido retirados da embalagem.

- Você tomou todos eles? – Perguntei.

- Alguns.

- Quantos?

- Seis. Mas vomitei logo depois.

- Tem certeza?

- Tenho, porra. Depois que engoli pensei na merda que eu estava fazendo... me desperdiçar por causa de homem.

- Tudo bem então.

- Tudo bem? HÁ HÁ HÁ... Não tem nada bem. – Ela falou quase histericamente.

- Dos males o menor. Enfim... Não sei o que dizer.

- Você nunca sabe de nada.

- Se você está dizendo. – Respondi sarcasticamente.

- Você sabe porque te traí sabichão?

- Faz alguma diferença?

- Faz toda diferença.

- Bem. Você se apaixonou por Matheus?

Lídia me olhou, como se estivesse realmente ultrajada.

- Você acha realmente isso?

- Porra Lídia. O que você quer? Quer me massacrar mais do que já fez? São duas da manhã. Eu estou aqui na porta do seu banheiro tentando garantir que você não vá se matar, e você quer que eu responda esse tipo de pergunta?

Lídia entrou novamente no banheiro, se sentou no vaso sanitário e levou as mãos à altura das têmporas.

- Me desculpa. Vê só. O negócio com Matheus eu nem sei explicar. Foi merda atrás de merda. No fim das contas foi mais sobre mim do que sobre ele.

- E é?

- Estar com você sempre foi tão bom. Tão perfeito. Que eu achei que não tinha mais nada pra querer nessa vida, se não fosse pra dividir com você. Mas nunca achei que você sentisse o mesmo. Teve uma hora que eu parei pra me questionar se eu era capaz de fazer você sentir alguma coisa. Qualquer coisa que fosse. E eu acho que eu me tornei só mais uma comodidade na sua vida. Uma transa, um carinho, uma conversa... Mas amor? Eu acho que amor você nunca sentiu por mim. E então acho que Matheus foi uma forma de te fazer sentir alguma coisa. Nem que fosse algo ruim.

Fiquei de cócoras, tentando olhar para os olhos de Lídia diretamente, mas ela tinha o olhar fixo no chão.

- Você faz ideia do quão doentio tudo isso está soando?

- Eu sei. Eu sei. Me desculpa. – Ela disse, estendendo a mão para que eu segurasse.

Mas eu virei de costas e entrei no box. Abri o chuveiro e enfiei minha cabeça debaixo d’água. Eu estava tonto. Mas a água fria me fez aos poucos voltar ao normal.

Enxuguei a cabeça com uma toalha de rosto e olhei uma última vez pra Lídia.

- Tente ficar bem, ok? – Falei pesarosamente.

- Ok.

- Estou falando sério. Sua mãe não merece acordar com a notícia de que você se matou. Muito menos eu. Você sabe o que isso tudo significa pra mim.

- Eu sei.

- Preciso ir agora.

Lídia se levantou e me abraçou. Chorou aninhada no meu peito até soluçar.

- Eu sei que fui péssima para você – Falou, após controlar os soluços.

- Esquece isso. Fica bem.

Me desvencilhei dela e a deixei no banheiro. Matheus estava na sala, fumando maconha em um bong e me ofereceu um pouco quando retornei.

- Não, obrigado – Falei.

- Complicada ela, não é? Não sei como você aguentou por tanto tempo.

- É. – Respondi.

- Amanhã ela vai estar melhor, quando passar o efeito das coisas que ela tomou.

Não respondi. Saí do apartamento sem fechar a porta atrás de mim. Pedi um Uber enquanto estava no elevador e voltei para o meu apartamento.

Natália estava dormindo, aparentemente. Espantei-me por ela não ter ido embora. Na verdade, me senti realmente feliz por isso. Tirei a roupa, entrei debaixo do chuveiro e liguei o aquecimento. Fiquei embaixo d’água por cerca de meia hora. Chorei por tudo o que tinha acontecido. Por tudo que tinha se estragado dentro de mim, e me perguntei muitas vezes quando eu poderia voltar a ser o que era antes. Antes de toda essa loucura.

Quando saí do box, percebi que Natália estava na porta com o celular na mão.

Havia lágrimas nos olhos dela.

- O que foi, meu bem? – Perguntei assustado.

- Sinto muito... Sinto muito. – Ela disse, correndo para me abraçar.

- O que foi Natália? – Perguntei novamente. Tentando tirar algum senso do choro e dos soluços dela.

- Matheus ligou... Sinto muito, meu amor. Não foi sua culpa.

- O que você quer dizer com isso?

- Lídia... Ela...

Me desvencilhei de Natália e me vesti na maior velocidade que pude. Desci as escadas do meu prédio e corri pelas ruas até onde Lídia morava. Havia uma ambulância parada na frente e eu entrei pelo portão do prédio que estava aberto. Percebi o corpo de Lídia caído no pátio, bem abaixo de onde ficava a varanda dela. Seu corpo estava estirado de um jeito não natural, mas ela estava de olhos abertos. No fundo eu sabia que ela não estava mais respirando. Caí no chão, devastado, sentindo o ar pesar nos meus pulmões. Naquele momento percebi nos olhos dela algo que nunca tinha visto em vida. Arrependimento.

Era uma pena que fosse tão tarde pra lhe dizer que eu também me arrependia.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 12/01/2022
Código do texto: T7427679
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