Regressão: O Espírito É Livre

Eu estou amarrado a um tronco. Já levei muitas chibatadas e estou a pão e água há dias.

Estamos, aparentemente, no início do Século XVIII e eu sou um escravo em um engenho de açúcar. Sou filho de uma escrava com seu senhor, que a pegou à força, mas eu só soube disto quando minha mãe estava em seu leito de morte e me contou. Isto aumentou o ódio que eu sentia por meu senhor. Como pode um pai escravizar um filho?

Minha pele é bem mais clara que a dos outros escravos. Eu me sinto diferente. Os outros escravos me discriminam pela cor de minha pele e eu não pertenço ao mundo dos brancos pois sou um escravo.

Quando minha mãe morreu eu tinha mais de vinte anos e fiquei então sabendo que o sinhozinho, filho do meu senhor, era meu meio irmão. Ele tem tudo e eu nada. Ele é um vagabundo que nunca trabalhou. Foi estudar no entrangeiro e quando voltou era todo almofadinha.

Talvez por saber que era meu pai, meu senhor me deixou ficar nos serviços mais leves, em volta da casa grande.

Um dia o sinhozinho chegou com a sinhazinha. Tinha se casado. E ela era uma formosura. Doce, suave. Quando olhei pra ela meus olhos se encantaram.

E os dias sempre passavam lentos e amargos. Para um escravo não existe um só dia bom. O homem não foi feito pra ser escravo de outro homem. Isto é uma violência e uma falta de respeito que amarga a alma. Ninguém que não tenha vivido nesta condição é capaz de entender ou avaliar esta dor.

É uma condição vergonhosa, humilhante. Eu olhava para a sinhazinha e me sentia um nada. Os senhores nos tratam como animais ou menos que animais. Como se não tivéssemos alma ou sentimento, como se não fôssemos capazes de pensar.

A escravidão só perdura por tanto tempo porque a maioria dos escravos não conhece sua força e não sabe que pode lutar por sua liberdade. Simplesmente aceitam com resignação a sua condição.

Eu nunca aceitei esta condição. E nunca baixei a cabeça para o meu senhor. Algumas vezes, mesmo sabendo que era meu pai, ele mandou me castigar por minha insolência.

O sinhozinho era ainda pior que o meu senhor. Sentia prazer em fazer o mal. Já a sinhazinha era uma pessoa do bem. Tinha um coração dentro do peito. Ela sempre tratava todos muito bem e com delicadeza e educação. E era sempre tratada com grosseria pelo marido.

A sinhazinha, sempre que estava triste e isto era frequente, ia caminhar pelo jardim. E eu sempre conversava com ela. Achava que ela sabendo de toda dor que existe em meu peito pudesse se sentir melhor. Muitas vezes ela dizia que se sente infeliz e que o marido a maltrata.

E o tempo foi passando assim. Quando eu conversava com ela me sentia bem e ela também. E entre nós foi nascendo uma simpatia, um sentimento que jamais poderia existir.

Um dia ela chegou no jardim. Eu estava fazendo meu trabalho e ela se aproximou. Estava triste e parecia que tinha chorado. Ela veio conversar comigo. Mas logo depois o sinhozinho chegou:

-O que você faz aí conversando com este escravo do inferno. Vá pra dentro já. Uma mulher decente não conversa com outro homem a sós, ainda mais com um escravo.

-Eu estava só pedindo pra ele colher flores para mim.

-Não me responda, sua atrevida.

E deu-lhe uma bofetada.

Neste momento meu sangue ferveu nas veias e eu bati na cabeça dele com a ferramenta que estava na mão.

-Não bata nela, seu monstro.

Ele caiu desmaiado e ela disse pra eu fugir. Mas eu não fugi. Não tinha medo de nada.

Acabei no tronco e levando chibatadas. Fiquei por dias a pão e água. Mas na calada da noite a sinhazinha me trazia comida. E eu me mantive forte.

Numa noite combinamos de fugir. Ela iria procurar abrigo na casa do pai que era contrário à escravidão.

Na noite seguinte, fugimos. Eu sabia que as chances de conseguirmos escapar eram pequenas, mas não me importava mais nada.

Por dias e dias passamos fugindo e tentando escapar do capitão do mato. Sabia que se nos pegassem eu não teria a menor chance de ser perdoado por ter fugido com a sinhazinha.

Nessa fuga, vivemos o nosso amor em noites lindas no meio da mata.

Eu ousei tomar em meus braços e amar com paixão a sinhazinha, a esposa do sinhozinho. Ela se entregou a mim com uma paixão e despudor que sei que ela nunca se entregou ao marido. Com ela em meus braços eu me sentia livre.

E ela foi feliz em meus braços. E eu fui feliz nos braços dela.

Sabíamos que mais cedo ou mais tarde seríamos capturados. A fazenda do pai dela estava cercada.

E o cerco foi fechando até que nos pegaram. O sinhozinho estava com o capitão do mato.

-Seu escravo maldito. Como ousou fugir coma mulher do seu senhor? E você, sua vadia? Como pôde se rebaixar tanto? Se tornar amante de um escravo?

E eu disse:

-Ela não teve culpa de nada. Eu obriguei a vir comigo, como refém pra proteger minha fuga. Ela é uma mulher digna e eu tenho respeito. Ela não é e nunca foi minha amante.

Ele deu uma chicotada em meu rosto e o sangue escorreu.

-É verdade isto?

-Diga pra ele, sinhazinha, diga que eu lhe obriguei vir comigo.

Ela só balançou a cabeça.

Fomos levados de volta ao engenho. Eu fui direto para o tronco. E ela foi confinada na casa grande.

Eu levava chibatadas e fiquei a pão e água. Por mais de uma semana eu estava ali.

O sinhozinho veio até mim:

-Você vai ficar aí até morrer pra aprender a fugir e ainda levar a minha esposa.

-Acha que tenho medo? Antes a morte que a escravidão.

-Pois morra seu escravo abusado.

-Por que não me mata?

-Quero ver você morrendo aos poucos.

-Não tem medo que eu fuja mate o sinhozinho?

-Está me ameaçando?

-Vou dizer uma coisa, se eu não acertar as contas com o sinhô nesta vida eu acerto na outra. Pode esperar.

Ele me deu uma chicotada no rosto.

-Escravo insolente. Quem pensa que é pra me ameaçar?

-O sinhô sabe quem eu sou.

Como todo covarde ele virou e foi embora.

Nesta noite uma escrava que era amiga de minha mãe veio me trazer comida enquanto o vigia dormia. Eu pedi pra ela pegar uma faca e me soltar que eu iria fugir novamente.

Ela atendeu meu pedido. Quando eu me vi solto eu tomei a faca da mão dela.

-Diga a sinhazinha que eu sinto um profundo amor por ela e que os únicos dias felizes em minha vida foram os que passei com ela. Diga a ela pra tentar ser feliz, pra não ficar vivendo ao lado daquele monstro. Diga também que um dia a gente vai voltar a se encontrar em uma outra vida. Você me ajudou muito.

Peguei a faca e cravei em meu peito. Agonizo agora aguardando a minha morte. Aguardo o momento de tudo isto acabar e eu ser um espírito livre…

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 23/01/2022
Reeditado em 24/04/2022
Código do texto: T7435814
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