Karev Adoentado
Chuva torrencial.
O céu, infinita espuma cinza, dissolvendo-se em muita água. Ventos fortes sacudiam as plantas do jardim. Na grama, imensas poças d’água.
Encolhida no tapete da sala, defronte à porta aberta para o jardim, Miralda, lânguida e preguiçosamente, observava a paisagem. Piscava aqui e ali, levantava o focinho, apreciando o cheiro de terra molhada.
Karev passa à sua frente, do lado de fora, pinotando alegremente molhado, revirando o corpo, ofegante de satisfação, pulando de poça em poça. Contrariada com a interrupção do seu momento de relaxamento, a gata fechou os olhos e fingiu dormir.
Não adiantou. Assim que a avistou, Karev convidou: “Vem, Miralda? Vem sentir o frescor dos pingos, vem pular e espalhar água para todo lado?”.
- O quê? Ficar nesse frio? Sentir cheiro de cachorro molhado? Sandice! Além do mais (completa afetadamente) água não combina muito bem com minha aparência estética!
O cachorro gargalhou: “Verdade! Você provoca muitos sustos depois de um banho!”.
Exasperada com o inconveniente comentário, mas impossibilitada de demonstrar mais de perto a sua insatisfação, ignorou Karev, voltou fingir dormir.
Três dias depois, Miralda mal lembrava do temporal; Karev, porém, sofria suas consequências: acabrunhado na cama – corpo quente, dolorido, nauseado (sequer consegue olhar para a comida).
A humana, preocupada, ligou para o veterinário. Após a visita, o diagnóstico – virose. O cachorro foi internado – soro e medicamentos endovenosos.
Inicialmente, a gata reinou livre das fungadas e desastres do “pulguento linguarudo”, podia comer sem presenciar seus maus modos, os carinhos, todos para ela – a princesa Miralda da coleirinha de cristais. Muita emoção!! Suspirava.
Os dias passavam e a calmaria transformou-se em tédio, sua liberdade estava repleta de solidão. Começou a se preocupar com a saúde do cachorro, sentir falta da alegria, cumplicidade, conversas e, até, da sua insistente presença. Perguntava-se se ainda demoraria seu restabelecimento e sentia o estômago congelar com a possibilidade de ele morrer.
Ao fim do quinto dia, quando Miralda mal conseguia se levantar para perseguir baratas ou lagartixas, Karev voltou para casa – um pouco mais magro – mas repleto de alegria, com seu olhar bondoso e sorriso confortador. Ao vê-lo, a gata correu a seu encontro, ronronando, miando alegremente, arrodeando e se esfregando nele.
Karev, satisfeito, agradeceu a recepção e ousou exclamar: “Amiga, eu sabia que você gostava de mim! Você sentiu minha falta!”.
E já correu para o lado dela, perdendo a noção do perigo, fungando, empurrando a gata, batendo com a pata na sua barriga!
Ah, já viram, não deu outra! O raio da impaciência começou a atingir a cuca da gata. Esta ergueu a pata e miou! Um aviso, em consideração ao convalescente. O cachorro, inocente, insistiu na brincadeira. Ela já gritou: “Sai para lá, abusado! Tamanha ousadia! Chega!”
Karev, fazendo graça, ainda pulou várias vezes perto da gata, balançando o rabo. A gata irada, lutou, tentou, mas não lhe acertou o tapa. Para o seu próprio bem, o cachorro, ainda abatido, logo cansou e foi para sua cama. Miralda, contrariada, caminhou para o jardim, já arrependida do tanto que desejou o retorno do cachorro.