A peste de Herodes

Foi por aqueles dias que Herodes soube do nascimento de uma criança profeta. Um messias, onde já se viu isso? Tinha recebido em seu palácio a desagradável visita de três magos, estudiosos astrônomos metidos a sabichões que vinham falando de estrelas e de sinais no firmamento. Que coisa de maluco! Firmamento, orbes celestes? Ora, a terra é plana e todos sabiam disso desde a Mesopotâmia. Ainda por cima, queriam presentear o menino. Coisa mais estranha isso aí...

Atormentado pela ideia da estrela e de um menino do povo para lhe tomar o lugar, passou dias pensando num plano. Convocou seus astrólogos e sacerdotes, seus generais, os escribas e os representantes do centrão e perguntou-lhes sobre onde nasceria o tal menino prodigioso, ao que todos disseram que seria em Belém na Judeia, pois que assim estava escrito pelo profeta. Mas, as pesquisas todas não indicavam um bom cenário para o poderoso Herodes. Despachou os tais reis-magos com uma promessa de uma generosa recompensa por uma delação premiada que entregasse a localização do garoto e revelasse o nome dos pais.

Mas, ocorre que também por aqueles tempos, houve um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra. E Quirino, governador da Síria já tinha até mandado contratar recenseadores. Que ideia mais absurda! Herodes ainda resistiu, tentou barrar a medida, convencer os judeus falando em corrupção e farra com o dinheiro público, mas, ao fim foi vencido pela lei do Império, ou pelo Império da lei. Sem falar da imprensa da Judeia que deu para lhe atacar por qualquer coisa.

Era o ano setecentos e cinquenta e dois da fundação de Roma, o ano de quinhentos e trinta e oito do edito de Ciro autorizando a volta do exílio e a reconstrução de Jerusalém, no quadragésimo segundo ano do Império de César Otaviano Augusto.

Não tardou que toda gente se pusesse em marcha. Multidões peregrinavam por toda a parte para recensearem-se em suas cidades e aglomeravam-se em pequenos povoados para se apresentarem conforme determinava a lei. E assim, o povo, como rebanho, indiferentes ao autoritarismo de César e à nítida violação de suas mais sagradas liberdades tomava parte naquela grande conspiração. Algumas autoridades achavam tudo aquilo um descalabro, sobretudo Herodes que também tinha seu gado e faria de tudo para acabar com aquela palhaçada.

Mas, com o tempo e as muitas outras confusões da política na Judeia, a preocupação de Herodes voltou-se mesmo para o menino e a estrela que ainda lhe atormentavam o sono. Os boatos já corriam pela Judeia e pela Galiléia e o povo começou a esperançar um novo messias. Sentindo-se traído pelos magos e inconformado com a incompetência de seus generais e de seus agentes em dar conta de um garoto, viu, de repente, naquela confusão uma oportunidade incrível para seu plano de matança. E foi assim que o tirano Herodes decidiu que já que não conseguia localizar a criança na multidão nem eliminar os boatos, exterminaria todos os recém-nascidos e todos os meninos de até dois anos nascidos em Belém ou nos arredores. E mataria também os magos, é claro.

Acontece, porém que com tanta gente aglomerando e circulando pelas províncias, eis que logo veio uma aterrorizadora peste que se abateu sobre o povo judeu. Herodes negou sua gravidade, recusou qualquer ajuda de Roma, e como as mortes continuassem aumentando atribui à obra de Augusto, sem falar naqueles soldados vermelhos circulando por toda parte do império. Herodes então convocou seus curandeiros e mandou que preparassem unguentos, tônicos e curas caseiras. Logo, determinou a seus homens que espalhassem por toda parte aqueles remédios locais de eficácia discutível. Quando vieram novos tratamentos de Roma e, especialmente, um certo remédio milagroso inspirado um elixir do oriente e que os romanos chamaram de vacinum, Herodes recusou terminantemente os protocolos e execrou publicamente todos aqueles que desafiavam seus métodos. Consultou seus seguidores e incitou-os a recusar qualquer tratamento estrangeiro romana, mas sobretudo, oriental. Alguns inicialmente o ouviram e até acreditaram nos boatos, mas, com o tempo, muitos judeus passaram a questionar e duvidar das histórias e boatos de Herodes, que, inclusive não era exatamente lá de uma linhagem muito confiável.

Preocupadas com o espalhamento das doenças, as autoridades romanas de várias outras províncias determinaram imediatamente a aplicação nos adultos e depois mesmo nas crianças. E foi aí, que Herodes, preocupado com a morte de um determinado recém-nascido, um certo messias nascido sob o signo da estrela, acreditou que a peste poderia ser obra da providência divina vinda em seu auxílio afim de poupar-lhe das possíveis críticas e evitar o desgaste público pelo seu terrível plano de extermínio. Melhor e mais fácil que matar todas as crianças era entregá-las à peste de Augusto e negar aos menores os métodos da medicina romana. Acusou a ditatura de César de querer matar os filhos dos judeus e orientou seus ministros a seguirem firmes em uma verdadeira cruzada contra o tratamento e sem se importar com as dezenas de mortes.

A população, porém, preocupada e aflita com aquela doença misteriosa aderia cada vez mais ao tratamento estrangeiro, mesmo com toda a propaganda negativa e as muitas mentiras espalhadas pelo governo e seus agentes. Herodes, de outro lado, seguia irredutível na propagação de seus métodos e acreditava que a peste daria conta de matar não apenas o pequeno profeta como quem quer que desafiasse sua autoridade e seus mitos. Determinou a todos que não dessem o remédio nem aos velhos, nem aos adultos, nem aos menores, convocou seus exércitos e Ministros e tratou de conceber um plano para impedir o abastecimento e dificultar a chegada de qualquer remédio romano na província, especialmente em Belém, onde, de acordo com os magos e seus consultores, era onde o tal garoto se encontrava.

A presença da praga fez, inclusive, com que muitos se recordassem do cativeiro do Egito e dos velhos tempos de sofrimento e escravidão, contudo, dessa vez, eram eles, os judeus e não os egípcios que sofriam com as penas e suplícios e não por culpa do Faraó. A praga dessa vez estava do outro lado do mar morto. Pais aflitos por toda a Judeia e a Galileia imploravam ao rei que lhe desse a cura, mas Herodes sem nada fazer, seguia acusando a Ditadura de Cesar de fabricar uma doença para acabar com seu governo e escravizar o povo judeu.

As ondas da peste seguiam cada vez mais intensas e numerosas e Herodes seguia firme em seu propósito de entregar tudo e todos à morte. Até mesmo seus seguidores que com o tempo passaram a morrer em maior número em virtude da resistência aos tratamentos adequados. Logo apenas os resistentes e adeptos do partido de Herodes seguiam adoecendo e morrendo da famigerada peste e não tardou a que também os filhos dos seus seguidores passassem a ter o mesmo fim. Herodes simplesmente não se importava com crianças porque seus filhos, embora tão imaturos e inaptos para o reinado quanto ele, já estavam afinal bem crescidos, ao menos em idade.

Contudo, e incrivelmente, o saldo de mortos, a pobreza e a miséria do povo e os muitos desacertos do governo não foram suficientes para que o enlouquecido Herodes fosse tirado do poder. Talvez porque ainda e apesar de tudo contasse com a fidelidade e contribuição de muitos escribas, magistrados, generais e sacerdotes, deslumbrados e extasiados com aquele espetáculo de imenso poder e desmando, e que insistiam em apoiar aquela sandice e espalhar seus delírios entre o povo. Isso sem falar na ação silenciosa de suas milícias e na inexplicável simpatia que contava entre pastores e comerciantes sem noção de futuro e economia, com medo das profecias ou das pesquisas eleitorais. Assim, Herodes completou seus dias de governo e entrou para a história como o pior governante da Judeia em toda a história, o que aliás, dado o turbulento passado e a inconstâncias políticas não era lá um título muito fácil de se conseguir. Tudo ficou ainda mais complicado quando o principal oráculo do governo e guru pessoal de Herodes morreu em virtude da peste que tanto negara.

E foi assim que Herodes, o tirano, o grande matador de criancinhas, embora tendo condenado milhares à morte e apesar das tentativas de exterminar o povo, em especial as crianças, não conseguiu se livrar do menino. Contam a lendas que o pai da criança, avisado por um mensageiro celestial, teve que ir para o exílio com sua família e submeter-se a uma temporada no Egito para proteger o infante que, ao fim, se salvou. Regressaram para a Galiléia quatro ano depois, quando Herodes o grande morreu. Seu filho primogênito, Herodes Arquelau, conhecido como 01, assumiu depois da morte do pai, mas, de tão incompetente foi tirado do trono por Roma. Outro Herodes, Antipas, o 02, igualmente insignificante e desprezível, o teria substituído e se revelaria tão inapto e cruel quanto todos os outros.

A parte triste da história é que ainda levaria alguns anos até o povo Judeu enfim se livrar de uma vez por todas da maior, mais terrível e duradoura peste que jamais se lhes abateu antes ou depois daquele tempo. A velha Judeia ainda teria muito a sofrer com aquela família. Continuariam desgraçando o povo por mais algum tempo, perseguindo seus opositores, incluindo o profeta da estrela que não apenas retornara como fazia cada vez mais e mais seguidores. A verdade é que ao fim e apesar de todos os esforços, Herodes e sua gente jamais conseguiriam exterminá-lo porque o menino de Belém estava predestinado a triunfar. Sua história é longa, seu legado, incontestável, e seu fim, até hoje, envolto em grande debate, mas o que importa é que a história, ao fim, sempre se ocupa de dar a cada um o seu devido lugar no céu ou abaixo dela, na luz ou nas trevas. E seres sem luz jamais conseguirão brilhar.

Gabriel Frias
Enviado por Gabriel Frias em 07/02/2022
Código do texto: T7447107
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